Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


14-12-2001

Um Olhar sobre o Brasil Por Daniel Cunha


A Liberdade segundo Jorge Amado


“Liberdade – essa palavra

que o sonho humano alimenta:

que não há ninguém que explique,

e ninguém que não entenda! “


(Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência)



Diversos são os perfis dos livros de Jorge Amado. Mas se há algo que deu coerência tanto à vida como ao conjunto da obra do recém-falecido autor baiano, este algo é a ânsia pelo desimpedimento de se expressar, literária e politicamente, o que o levou a uma total cumplicidade – tida por várias ocasiões como subversiva com o povo na contestação de alguns aspectos obscuros da história do Brasil, como a repressão estatal a manifestações religiosas e culturais de origens africanas.


A liberdade. A liberação. As ousadias libertárias


Tais exercícios de potencialidades o acompanharam desde seus tempos de menino “grapiúna” que fugira da escola – e da vocação de literato erudito apegado aos intricos da Lingüistica – para em inúmeras oportunidades o mundo ganhar. “Os anos de adolescência na liberdade das ruas da Bahia, misturado ao povo do cais, dos mercados e feiras, nas rodas de capoeira e nas festas populares (...) foram minha melhor universidade”, revelou orgulhosamente Jorge em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, quando ocupou a cadeira que já pertencera ao principal fundador desta tradicional Casa, o imortal Machado de Assis.


Intercalando o tempo de suas primeiras composições com o progressivo engajamento no mundo da Política, o referido escritor, já então seduzido pelas propostas ideológicas dos comunistas a ele apresentadas pela colega Rachel de Queirós, as quais serviram depois para aproximá-lo de intelectuais esquerdistas de peso internacional, como Pablo Neruda, Sartre e Georgy Lukács, foi por várias vezes levado à prisão, tendo seus romances e contos levados à fogueira nas praças de Salvador. Nem por essas adversidades o mais incansável dos filhos de Exu – por ser desde muito cedo apaixonado pelo universo místico do candomblé – deixou de ir a público denunciar as iniqüidades que o regime fascista impunha à cada vez mais alienada e antidemocrática sociedade brasileira. Foi inclusive nessa fase “panfletária” que criou o primeiro personagem épico negro da nossa Literatura, o líder grevista Balduíno (presente no romance Jubiabá, de 1935).


Na Política, sua maior contribuição às aspirações democráticas da gente oprimida da qual era proveniente foi quando, então deputado e membro da bancada comunista na Assembléia Constituinte de 1935, fez aprovar a liberdade de culto, até aquele período absurdamente coibida pelos donos do poder no país. Portanto, graças a ele nenhum pai-de-santo seria preso por praticar suas crenças, por devoto de outras divindades que não fossem as do cristianismo reinante.


Na Literatura, depois de esgotar as possibilidades estilísticas das esteticamente limitadíssimas cartilhas do realismo literário importadas de Moscou, e logo após a publicação do fiasco artístico, porém obra histórica, política e ideologicamente valiosa – sendo inclusive proibida também proibida em Portugal e nos outros locais onde o português é falado - , que foi o romance em três volumes Os Subterrâneos da Liberdade (1954), Jorge Amado deu uma guinada qualitativa em sua produção literária, buscando afinidades com a vertente lírica da prosa brasileira, a qual teve como predecessor relevante e influente o romântico José de Alencar. Assim, fiel ao temperamento romântico, e dispensando a linguagem hierática mediada pela razão, ele menos buscou de forma analítica a essência da palavra “liberdade” do que simplesmente a sentiu como um belo enigma “que o sonho humano alimenta”. E a extravasou de imediato nos rascunhos de seus novos trabalhos.


A partir daí, manipulou com admiráveis sensos de lirismo e dramaticidade histórias de grupos de personagens, as quais de imediato ampliaram consideravelmente as vendagens dos seus livros, mais do que nunca grandes sucessos de público, lidos e traduzidos em dezenas de países, apesar dos constantes ataques disparados por críticos fiéis às tradições puristas que primam por complexas elaborações fraseológicas, adversários da influência – presente nas obras de, entre outros, Rachel de Queirós, José Lins do Rêgo e do próprio Jorge Amado - do regionalismo norte-americano, cujo maior representante é Ernest Hemingway, e ainda duvidosos da existência de tamanho exotismo na deveras autêntica sociedade baiana.


Logo, aparece inerente a cada romance, conto ou novela, um hino. Um hino à liberdade. Assim como foram Cacau (1933) um hino às dores dos “alugados” das fazendas de cacau, Suor (1934), às dificuldades dos habitantes de um cortiço, Mar Morto (1936), ao sofrimento dos mestres de saveiro, e Capitães da Areia (1937), aos devaneios e à liberdade dos menores abandonados que vivem – ainda – na beira do cais de Salvador, serão também Gabriela, cravo e canela (1958), Dona Flor e seus dois maridos (1966), Tereza Batista cansada de guerra (1972) e Tieta do Agreste (1977) hinos à liberação das mulheres numa rígida estrutura social machista, e, finalmente, a pequena obra-prima do autor, A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua (1959), um hino de todo aquele que se liberta de si mesmo. Neste conto memorável, o percurso da transformação do protagonista, de saudoso e respeitável funcionário público Joaquim Soares da Cunha a “cachaceiro-mor de Salvador, filósofo esfarrapado da rampa do mercado, senador das gafieiras, vagabundo por excelência e patriarca da zona de baixo meretrício”, o Velho Marinheiro Quincas, vai da passividade e do recalque ao comportamento libertário – e até mesmo, de forma radical, libertino.


Enfim, em torno da figura mítica de Jorge Amado, misturam-se e confundem-se o homem em si, o homem público, o contador de estórias e suas criaturas retiradas do âmago popular romantizado. O óbvio é que ele, com tudo isso, fez o que teve vontade de fazer - mesmo com as necessárias pedras no caminho e os tropeços intelectuais naturais, presentes na vida de qualquer livre-pensador, e no entanto essenciais ao amadurecimento espiritual. Agiu espontaneamente, sem se preocupar muito com juízos alheios, estivessem eles certos ou errados. E, coerente e sensatamente, esteve de maneira implícita em consonância com o que havia escrito o filósofo Baruch Espinosa: “Portanto aquele que existe e age por uma necessidade de sua própria natureza, age livremente. A liberdade não tira a necessidade de agir, mas a põe”. Reconheçamos: foi-se uma vida potencializada, a vida de um homem livre, amante e amado, o curandeiro de dos nossos traumas da escravidão, um exemplo para todos nós.



Roberto Corrêa e a Viola Caipira

Roberto Nunes Corrêa é físico e violeiro, e certamente o maior expoente da tradição artística do subestimado, oculto, esquecido Triângulo Mineiro.

Natural de Campina Verde, Roberto descende de uma longa linhagem de violeiros. O bisavô, Damião Corrêa da Silva, antigo “capitão de folia de reis”, e o avô, João Baptista Corrêa, fizeram história na região. Este último, também poeta popular, fazedor de versos satíricos, foi barbaramente assassinado numa tocaia feita pelos capangas dos poderosos coronéis, até hoje proprietários dos “currais” regionais.

Roberto começou a estudar violão aos oito anos de idade, e só mais tarde passou a se dedicar ao instrumento do qual é um dos grandes especialistas na atualidade. O convívio desde criança com músicos populares, violeiros da catira (dança cabocla, de origens indígenas) e das folias de reis, trouxe para ele, em suas próprias palavras, “o conhecimento e a compreensão dos mistérios dessa sina [de violeiro]”. Mas quem ele considera seu grande mestre, com quem aprende permanentemente, é J. S. Bach, cuja música pode ser vista como uma codificação dos do que há de mais complexo nos fundamentos da Física moderna – como os fractais (grandes conhecidos dos teóricos do Barroco). Bach é , aliás, mestre de muitos outros estudiosos da música autóctone do interior do Brasil, inclusive o Villa-Lobos das Bachianas Brasileiras.

Atualmente Roberto Corrêa é conhecido no mundo inteiro, e tem vários trabalhos discográficos editados no exterior. Certa vez escreveu: “Logo na primeira vez que vi a viola, senti que minha missão seria levá-la para o mundo”. Então parece que sua missão já está cumprida.

Quando lhe perguntaram se a viola tem o som do sertão ou o sertão tem o som da viola, respondeu: “ O Sertão tem o som da viola, mas a viola é mais do que o sertão enquanto lugar. Porque ela é portuguesa, é açoriana, é caipira, é nordestina e litorânea. No entanto ela é tão somente o Sertão, esse Sertão, esse Sertão que é de cada homem em todo lugar”.

Para quem se interessar em seus inúmeros discos livros e livros sobre a viola, os violeiros e a tradicional cultura caipira, há o sítio www.robertocorrea.com.br à disposição.



Luís Gama, esse "Negro Genial"

Nos dias de hoje, pergunta-se ao brasileiro em geral, e aos afro-descendentes em particular, quem foi Luís Gama. Quase todos fazem cara de desentendidos; nem imaginam quem foi. Mesmo pessoas ilustradas, conhecedoras da História, nunca ouviram falar. E é sempre admirável para os que sabem algo dele.

Vamos pelo início: Luís Gonzaga Pinto da Gama nasceu a 21 de julho de 1830 na cidade de São Salvador, capital da Bahia. Sua mãe, Luísa Mahin, era uma africana livre da Costa Mina, "nagô de nação", e ganhava a vida como quitandeira. Depois de sete anos, a mãe o deixou após participar de algumas insurreições escravas, partindo para o Rio de Janeiro. O filho ficou então sob os cuidados do pai, um fidalgo português, que, por dificuldades financeiras, o vendeu como escravo, em 1840. A bordo do patacho Saraiva, um navio do tráfico interprovincial de escravos, desembarcou no Rio, e de lá rumou para São Paulo, onde trabalhou como servo doméstico na casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, até 1848.

Na época de sua venda, ocorreram na Bahia inúmeras rebeliões, como a Revolta dos Malês, em 1835.Eis a razão por que os escravos de origem baiana eram temidos entre os cafeicultores paulistas. Quanto à própria venda, Luís Gama lembra: "Fui escolhido por muitos compradores... e, por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de eu ser ‘baiano’ ". As insurreições baianas foram para o infante muito marcantes. Nessas circunstâncias, no contato com diferentes etnias oprimidas, sua personalidade tomou forma e a solidariedade com os escravos marcaria toda a sua vida. A própria mãe nunca aceitara a religião cristã. (Aliás, ele foi procurá-la em 1847, 1856, 1861, e só ficou sabendo de uns "pretos minas" que ela havia sido presa em 1835 por trabalhar numa "casa de dar fortuna".)

Em São Paulo, Luís Gama tomou contato com outra realidade social, o "mundo dos brancos". Em 1847, sua vida cotidiana, preenchida pelo ofício de lavar, costurar e engomar para os donos, foi seriamente abalada após o contato com um estudante de Direito, Antônio Rodrigues do Prado Júnior, que então lhe ensinou a ler. Então decidiu fugir, sabendo da ilegalidade de sua condição – já que sua mãe era livre. Seu "senhor" sequer tentou procurá-lo