Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


30-03-2022

Antifascistas da Resistência ÚRSULA MACHADO CASTELHANO (1924-2001)


Militante antifascista exemplar na coragem, mulher de extraordinária grandeza moral, viveu na clandestinidade a partir de Janeiro de 1957 e foi presa em 1968, com o marido, numa casa clandestina. Era uma tipografia do PCP. Conduzida para a PIDE com a filha, de catorze anos, foi barbaramente torturada: submetida à tortura do sono, espancada, chantageada e ameaçada. Nem assim a polícia lhe arrancou a confissão ou denúncias dos companheiros e sobre a organização. Julgada em Tribunal Plenário, foi condenada a seis anos de prisão. Levada quase à loucura, ficou com a saúde arrasada até ao fim da vida.

1. Úrsula Machado Castelhano, natural de Vale de Vargo, casou-se com José Lobato Pulquério e teve três filhas: Úrsula Machado (nome igual ao da mãe) conhecida, como cantora, por Luísa Basto (intérprete da canção “Avante, Camarada”), Maria Machado e a mais nova Maria José.

O seu companheiro foi preso pela primeira vez por altura de uma das várias lutas dos trabalhadores alentejanos (1954) e ficou em Caxias seis meses. Em 68, foi novamente preso, com a mulher, e ambos julgados em Tribunal Plenário.

Úrsula era natural de uma terra com grandes tradições de luta e começou a trabalhar muito nova. Em Vale de Vargo (concelho de Serpa), as mulheres procuravam trabalho onde pagavam melhor, e quando viam que os ordenados eram de grande miséria e que não chegavam para dar de comer aos filhos, juntavam-se e lutavam.

«Barrávamos o caminho aos fascistas, é assim mesmo. Aquelas pobres não conheciam nada, não percebiam as coisas e então nós dizíamos uma para as outras: “Este ordenado não serve para nós, portanto juntamo-nos todas e vamos falar com eles. Ou elas deixam o trabalho ou a gente não consente que vão para a frente. Se não serve para nós também não serve para elas e têm de lutar connosco» (*). Assim, iam mobilizando as mulheres menos conscientes do direito que deviam ter, ao pão, por um melhor pagamento. Uniam-se umas com as outras – algumas eram do Partido Comunista. Úrsula teve sempre, tal como as outras mulheres da terra, uma vida muito dura, um trabalho muito mal pago, que era apenas metade do salário dos homens. No tempo da guerra, labutavam todo o dia só com uma garrafa de leite, nem pão havia. Trabalhavam de sol a sol, cheias de fome. «Sabe o que comíamos? Chama-lhe a gente um gaspacho, com tomate, pepino, água, vinagre, uma gotinha de azeite, sopas migadas e pronto, era a nossa comida para o dia inteiro. Depois à merenda um bocadinho de pão com queijo, ou com azeitonas, ou com um bocado de toucinho, aquelas que o tinham. Foi sempre assim a alimentação. É assim que eu me lembro da comida do Alentejo, quase toda a vida».

2. Em 1968, vivia na clandestinidade com o companheiro (na Damaia, desde 1960), quando a PIDE lhes arrombou a porta. (Na verdade, desde 1957, tinham uma vida semi - clandestina). Foram presos em casa, onde tinham a tipografia com que trabalhavam. Era ali que faziam o «Avante» e outros documentos clandestinos. Nesse dia, estavam deitados, eram 4 h da manhã, quando ouviram barulho. Ele foi ver e avisou-a de que era a PIDE. Úrsula dirigiu-se rapidamente à cozinha e começou a queimar papéis. Os agentes da PIDE, no exterior, aperceberam-se e, com um pé de cabra, rebentaram a porta da entrada da casa. Assim que entraram, começaram a espancá-los. José Pulquério conta numa entrevista que «Quando os gajos encontraram a tipografia ficaram tão contentes que até se abraçaram» (*). Ele é levado imediatamente para a sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, mas Úrsula fica com a filha mais velha, Maria José, que era a única que ainda continuava com os pais na clandestinidade. [Quando as crianças na vida clandestina atingiam a idade escolar, em geral iam para junto de pessoas de família].

Ali permaneceram ambas, vigiadas pelos agentes, até chegar um carro da PIDE com mulheres dessa polícia, e serem então conduzidas à Rua António Maria Cardoso. A gritaria dela ouvia-se no bairro. Era o procedimento habitual dos antifascistas. «Eles iam a empurrar-me para dentro do carro quando eu comecei a gritar: olhem que vou presa, vou presa mas sou do Partido Comunista, não sou presa por assassina nem criminosa, estes é que são uns bandidos e uns criminosos, são os pides, vieram prender-me a casa. Eles a empurrarem-me e eu com as mãos agarradas ao tejadilho, sempre a gritar com toda a força. Lá me atiraram para dentro do carro, com uma pide de cada lado, mas nunca deixei de gritar. Elas a taparem-me a boca com um casaco, que eu levava no colo, e eu a tirá-lo e a esbracejar, sempre a gritar. Não deixei de gritar enquanto não cheguei à auto-estrada. Que eles eram pides, que eram uns assassinos, que ia presa por eles, que eram uns criminosos, uns bandidos. Na auto-estrada, como não havia ninguém já não valia a pena gritar...»

3. Levaram-na para a sede da PIDE, enfiaram-na com a filha numa sala e trouxeram-lhe leite e bananas, que Úrsula se recusou a comer, contudo, dizendo à menina que comesse. A agente aproveitou para procurar questionar a miúda, mas Úrsula interpôs-se, impedindo-a de continuar o interrogatório. Depois, levaram-nas para Caxias, e a filha foi mantida presa com a mãe durante mais 18 dias. Ao fim desses dias, sem qualquer muda de roupa ou toalha, limpando-se ambas ao casaco da mãe, após as lavagens, foram levadas para a sede da PIDE. O inspector da PIDE Tinoco recebeu-as, interrogou Úrsula, interrogou a criança, e permitiu, então, que Maria José fosse entregue a uma tia, irmã de Úrsula. «Eu nessa altura devia ter posto os pés à parede, mas a gente ficava transtornada». Voltou para Caxias, e uns dias depois chamaram-na novamente à Pide, em Lisboa, agora sim, para o primeiro interrogatório de confronto, feito pelo inspector Capela. Tinham-lhe tirado tudo, o relógio, a aliança, o anel, o fio, deixando-a ficar sem nada. O inspector começou por informá-la de que os agentes não tinham pressa, podia demorar, à vontade, mas que tinha chegado a altura de ela fazer declarações. Perante o seu imediato esclarecimento de que se recusava peremptoriamente a fazê-lo, a reacção do pide foi a habitual: «Ora, ora, ora, senhora Úrsula, não entre por esse caminho! Todos dizem isso, mas depois falam, porque daqui ninguém passa sem falar. Ou muito ou pouco, todos falam… Se entra por esse caminho entra muito mal. Sofre e acaba sempre por falar». Depois de dias de ameaças e de pressões psicológicas, com as filhas no centro das constantes chantagens, ela mantinha-se na mesma firme atitude de não colaborar com a PIDE (nem um mínimo), pelo que, a dada altura, o referido inspector irrompeu na sala de interrogatórios, exasperado, aos gritos: «Só me aparece é gente desta, mandem-na para Caxias, mandem-na para Caxias!» E foi. Uns dias depois, voltou à Rua António Maria Cardoso para interrogatórios: doze dias e doze noites em tortura do sono. Desta vez a chantagem era outra: que o marido já tinha falado e que ela tinha que falar, que não adiantava continuar calada. À pressão psicológica juntaram as agressões, sobretudo por parte de uma agente de nome Albertina , mas Úrsula resistia: «Tragam o meu marido à minha presença. Só assim é que eu acredito que o meu marido falou». Disseram-lhe que sabiam que ela ia a encontros, que entregava a imprensa. «Mas enfim, isso era apenas mais pacote menos pacote. Precisavam é de saber o que eu tinha feito no meu Partido. Quando eles se iam embora eu ficava com a agente, que também tentava fazer-me falar. A que me bateu mais foi uma que se chamava Maria Albertina. Nos turnos dela batia-me sempre, dizia que se eu não falasse era torturada, era espancada e era morta. Mas eu pensava que ela não era mais teimosa do que eu, que ela era pide e eu era comunista e não havia de falar. Tinha que passar aquela barreira e pronto».

4. Segundo a sua descrição, a agente, com o punho fechado, batia-lhe na cara e na cabeça, até que ficou com um olho tapado, fechado, roxo, e a boca inchada, sem poder comer. Dava-lhe pontapés por todo o lado. «E eu nada. Ia-se ela, vinham outras que também tentavam fazer-me falar, mas eu já tinha dito que não falava e não falava mesmo. Umas eram piores que outras. A Maria Albertina foi a que me bateu mais, mas havia uma Madalena, e outra Zulmira». Não a deixavam sentar, o que obrigou Úrsula a tirar os sapatos, porque, às tantas, os pés já não cabiam, inchados e cheios de bolhas. Eram quatro os inspectores: o Tinoco, o Capela, e mais outros dois, um dos quais um tal Artur Monteiro. Um dia, o Capela disse-lhe: «Então, mas o que é que você quer? Daqui ninguém sai sem falar. Nem que seja um mês ou dois a secar. Olha a ursa, então não é que quer uma estátua! Onde é que você quer a estátua, quer em Vale de Vargo ou quer em Moscovo?» Úrsula calada. Entravam um inspector, saía outro, numa roda viva de perguntas, de questões, que ora eram sobre o bilhete de identidade (falso, claro), ora sobre pessoas que pretendiam que ela identificasse, mostrando-lhe fotos. Foi então que a espancaram a ponto tal que desmaiou. «A que me deu com um cassetete foi a Zulmira. Deu-me aqui no braço, apanhou-me os tendões que até fiquei logo com os dedos encolhidos. Deram-me em todo o lado, na boca e tudo. Começou a correr sangue e perdi os sentidos. Mas não me mandaram logo para Caxias». Nessa noite deram-lhe uma cama e esteve deitada, até aparecer, pouco tempo depois, o Capela com a agente Zulmira, para tentarem convencê-la de que enlouquecera: «Então quantos dias é que dormiu?».

Regressou ao Forte de Caxias e lá ficou. Um dia voltou à António Maria Cardoso, queriam que ela «assinasse uns papéis», mas ela recusou.

Depois, aguardou julgamento no Tribunal Plenário durante cerca de 6 meses e foi julgada por duas vezes. No primeiro julgamento foi condenada a 2 anos e, como tinha o bilhete de identidade falso, no segundo julgamento foi condenada ao cumprimento de outra pena, outros dois anos, o que com as famigeradas «medidas de segurança», resultaria em 6 anos de prisão. Porém, dado o seu muito abalado estado de saúde, cumpriu “apenas” 4 anos e 3 meses. «Mas nessa altura estive tão doente, tão doente lá na cadeia! Era como se tivesse as minhas filhas mortas, queria-me matar… puseram-me mesmo maluca da cabeça. Dei dois golpes aqui no pulso, vê as marcas?, a ponto de ter sido internada no Hospital Miguel Bombarda. Conseguiram que eu ficasse transtornada da cabeça. Estava completamente maluca. Dizia que tinha as milhas filhas mortas, pus-me duas vezes de luto pelo meu marido porque pensava que ele tinha morrido, que tinham dado um tiro na minha Zezinha à porta da cadeia, eu sei lá! Nem queria ir às visitas porque já não tinha ninguém. Uma vez (…), fiz durante quatro dias a greve da fome. Atirava fora toda a comida que me levavam. Mas depois de muita luta, com médicos e vários enfermeiros, amarraram-me, deram-me uma injecção e acabei por ser entubada à força».

Helena Pato

(*) Do depoimento de Úrsula Machado Castelhano, para o livro “A força ignorada das companheiras” de Gina de Freitas, Plátano Editora, 1975. Nesse testemunho pode-se ler:

«Quando Úrsula Machado se dispõe a falar, as recordações brotam em catadupa e já não é possível detê-la. Na ânsia de recordar pormenores, de não deixar no esquecimento a mínima palavra de insulto, a menor tentativa de tortura, fala, gesticula, quase grita, como se revivesse novamente esses anos de pesadelo».

A fotografia foi tirada no hospital, quando Úrsula Castelhano se encontrava presa.

Todas as fotografias, deixadas nesta biografia e em comentários, foram disponibilizadas pela filha, Maria

___________________________________________

Esta página destina-se apenas a arquivar notas biográficas de ANTIFASCISTAS DA RESISTÊNCIA na Ditadura Militar e no regime fascista do Estado Novo.

Se quiser conhecer o conjunto das cerca de 900 notas biográficas _ que vêm sendo regularmente escritas por colaboradores do grupo «Fascismo Nunca Mais» _ deixamos-lhe o link que permite aceder ao índice. Basta clicar:

http://antifascistasdaresistencia.blogspot.pt/

Se quiser aceder ao grupo Fascismo Nunca Mais:

https://www.facebook.com/groups/helenapato/