Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


30-03-2022

TERÁ PESSOA DITO «A MINHA PÁTRIA É A LÍNGUA PORTUGUESA»? Abdul Cadre, autor


Apetece dizer que sim e apetece dizer que não.

Porquê?

Porque quem o disse foi um membro destacado da academia privada pessoana, Bernardo Soares, um ajudante de guarda-livros de Lisboa. A este chama Pessoa, em carta para Adolfo Casais Monteiro, em Janeiro de 1935, semi-heterónimo «… porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade».

A tal frase exaustivamente citada nunca refere – ou eu nunca reparei – o autor académico investido por Pessoa, mas apenas este mesmo, ortónimo. Ela, a frase, consta do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, e transcrevemo-la de seguida:

««Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há, porém, páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez, numa selecta, o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. “Fabricou Salomão um palácio..." E fui lendo até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais – tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E disse; chorei; hoje, relembrando, ainda choro (...) não tendo sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa.»