Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


05-05-2022

A PAZ ANTES DA JUSTIÇA por Viriato Soromenho Marques


por Viriato Soromenho Marques (no DN)

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Sobre as razões da desordem do mundo, o nosso Padre António Vieira (1608-1697) soube definir com clareza, não só as duas categorias principais que permitiriam substituir o caos pela ordem como também a respetiva prioridade entre elas: "Abraçaram-se a justiça e a paz, e foi a justiça a primeira que concorreu para este abraço. Porque não é a justiça que depende da paz (como alguns tomam por escusa) senão a paz da justiça" (Sermão ao Enterro dos Ossos dos Enforcados).

A tese de que é à justiça que cabe criar as condições para a paz, parece ser confirmada tanto pela razão como pela longa experiência da história doméstica dos povos.

A injustiça praticada por classes e fações sobre outras pode conviver, temporariamente, numa aparente ausência de conflito, mas nunca como uma paz solidamente ancorada.

Contudo, já no plano internacional essa regra não se aplica universalmente. Vejamos o caso da guerra que nos tira o sono. A invasão russa da Ucrânia configura o crime de agressão de um Estado a outro, curiosamente, introduzido no direito internacional depois da II guerra mundial pela ação do jurista soviético Aron Trainin (1883-1957).

Em 2018, o Tribunal Penal Internacional (ICC), que julga indivíduos e não Estados, acolheu esse crime na sua jurisdição, levando com isso à possibilidade de chamar a juízo líderes políticos responsáveis por atos de agressão.

Neste caso, a decisão de invasão da Ucrânia poderia ser imputada diretamente a Putin. Esse tema tem sido referido abundantemente no Ocidente.

Contudo, com isso corremos o risco de trocar as prioridades. Agora, deveríamos concentrarmo-nos no calar das armas, obtendo uma forma de paz, mesmo que frágil.

Na verdade, como escreveu Hobbes, os Estados habitam na margem do brutal "estado de natureza".

O direito internacional é imperfeito, pois não é acompanhado de um poder de coação universal. Dos julgamentos já realizados no âmbito de crimes de guerra, de Nuremberga e Tóquio à Jugoslávia, a justiça só foi aplicada aos vencidos.

Pensar que Putin pode ser levado a julgamento implica levar esta guerra até uma vitória sobre a Rússia, com o envolvimento direto das forças da NATO.

Certamente, dada a imensa vantagem da NATO em homens e material, a Rússia seria derrotada no campo de batalha convencional.

Contudo, a probabilidade de Putin responder ao que designa repetidamente como "ameaça existencial", passando ao uso de armas nucleares táticas, é demasiado elevada.

Estaremos prontos para uma escalada de destruição capaz de incendiar pelo menos a Europa, comprometendo a vida de centenas de milhões de pessoas? É a pergunta que nos deveremos colocar, bem como aos nossos governos.

Até 1989, ao contrário de hoje, não era preciso explicar aos políticos que quando estão envolvidas superpotências atómicas não podem existir vencedores, apenas vencidos.

O apoio militar da NATO à Ucrânia numa guerra defensiva foi decisivo para confirmar a sua irrecusável soberania. Prolongar o conflito, para exaurir uma Rússia com visíveis fragilidades, significará mais vidas perdidas e um risco de escalada.

Chegou o tempo de a diplomacia parar a espiral de sofrimento. A paz tem, neste caso, prioridade sobre a justiça, e deve dar-lhe tempo.

Perseguir incondicionalmente a justiça pela força das armas, seguindo até ao fim o lema de "faça-se justiça, mesmo que o mundo pereça" (fiat justitia, et pereat mundus) apenas conduzirá à mais desoladora paz possível, aquela em que os sobreviventes terão inveja dos que pereceram.

(Viriato Soromenho Marques é Professor universitário)

https://www.dn.pt/opiniao/a-paz-antes-da-justica-14791559.html