Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


25-06-2022

Escrevi há 3 anos, mas continua atual, João Paulo Esperança


João Paulo Esperança .em Timor Leste, no FB "Escrevi há 3 anos, mas continua atual"

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[Tradutor-intérprete português, professor no Departamento de Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade Nacional de Timor-Leste]

 

A propósito de um estudo em Portugal que mostra que os alunos de famílias com melhor condições socioeconómicas dominam os cursos universitários com notas de entrada mais altas:

Nasci numa família modesta de pais com a quarta classe, entre avós maternos e paternos só um não era analfabeto, mas cresci no Portugal pós-25 de Abril, o tal do investimento na escola pública, e no Portugal em que cresci as portas de acesso não estavam trancadas. A vida não é um mar de rosas, uns têm de ultrapassar muito mais obstáculos do que outros, mas os obstáculos não são grilhetas.

Durante a escola primária eu e quase todos os meus colegas íamos a pé para a escola, de verão e de inverno. Os meus amigos mais próximos moravam em Espinheiro, mas eu morava na agra, perto da Barquinha, por isso tinha de caminhar o dobro da distância. E da fonte (perto da ordenha) para a frente a estrada ainda nem sequer tinha alcatrão, por isso quando chovia ia a chapinhar na lama, tentando evitar pisar as fezes das vacas. Não pensava nisso como "opressão capitalista", era simplesmente um conjunto de circunstâncias da minha vida que eram diferentes. Um dos meus amigos usava óculos e, naquela idade, isso parecia-me uma dificuldade bem maior do que andar mais tempo à chuva para ir para a escola.

Os livros em casa no início não eram muitos, mas havia as bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, e, no ciclo e escola secundária, as bibliotecas escolares (nesse tempo ainda não havia as excelentes bibliotecas municipais que Portugal hoje tem). E no Natal às vezes eu pedia um livro em vez de um brinquedo. E os meus pais também lá iam equilibrando o orçamento doméstico para encomendar livros pagos a prestações que eu andava sempre a pedir.

A meritocracia não tenta atirar areia para os olhos das pessoas, diz apenas que com esforço existe a possibilidade de ultrapassar os obstáculos, mesmo que uns vão de carrinho e outros vão a pé e a subir, mas é melhor do que o "coitadinhismo" dos que gostam de coisas como quotas de acesso à universidade por sexo (antigamente para permitir a entrada de mulheres, hoje suponho que haveria para permitir a entrada de homens em muitos cursos em que são cada vez menos), por cor da pele, por tamanho das orelhas, por alergias de que seja portador, por escalão socioeconómico dos pais, etc. O que me parece mais relevante no texto do artigo é a referência aos estudantes bolseiros no ensino superior: não por estarem em pequena percentagem em Medicina, mas por existirem nos diversos cursos, sinal de que o Estado não se demitiu do seu papel de dar oportunidades a quem revela potencial. O caminho para o progresso passa pelas boas bibliotecas públicas, valorização e formação dos professores, promoção da excelência como objetivo no quotidiano escolar dos alunos, e uma ação social nas escolas e universidades capaz de dar apoios adequados aos alunos com dificuldades económicas.

Já pensaram que, se o estudo tivesse olhado para a cor da pele dos pais, em vez do seu estatuto socioeconómico, teríamos agora o Bloco de Esquerda e os fundamentalistas das "políticas de identidade" a gritar por todo o lado que Portugal é "racista" porque há poucos alunos oriundos de famílias "não-brancas" nos cursos com maior nota de entrada??