Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


13-07-2007

Nós e a China - Carlos Fiolhais


Há alguns anos, quando visitei Macau, pude verificar ao vivo algo que já sabia das figuras dos jornais e dos livros: que se trata de um impressionante sítio do mundo, o local com a maior concentração de pessoas por metro quadrado. Mas, ao mesmo tempo, pude perceber algo mais difícil de transmitir por imagens: trata-se de um local onde se deu um encontro pacífico de culturas: a chinesa, oriental para nós (para os chineses o seu império sempre foi o do “meio”) e a portuguesa, ocidental (na altura do primeiro encontro, Portugal era o país mais ocidental do ocidente). Tratou-se de um convívio enriquecedor para as duas partes, pacífico porque baseado no consentimento e na tolerância, que, longe de terminar com a passagem de Macau para a China, passou a revestir-se de um carácter diferente. Se é no encontro de culturas que a humanidade tem encontrado novos caminhos históricos, Macau é um caso exemplar que o deve continuar a ser. No final do século passado houve um adeus português "sui generis", uma despedida que pressupõe a continuação de uma secular miscigenação de culturas.

A interpenetração cultural não passou, curiosamente, pela disseminação da língua portuguesa, que era bastante minoritária (perdia de longe para o cantonês e até para o inglês, dada a proximidade de Hong Kong) e que naturalmente verá a sua presença decrescer progressivamente. Também não passou pela hegemonia da religião católica, também muito minoritária e impotente perante a forte tradição das religiões orientais. Mas passou, por exemplo, pelo intercâmbio artístico-literário (não esqueçamos que o nosso maior poeta esteve em Macau!) e científico-tecnológico. Este último não é suficientemente conhecido e merece por isso ser destacado. Iniciou-se logo na época das Descobertas: foram jesuítas portugueses que introduziram conhecimentos de astronomia muito mais avançados do que aqueles que dispunham os imperadores chineses (e que permitiam prever eclipses com precisão elevada) e foram também os portugueses que introduziram na China instrumentos como os relógios mecânicos (que depressa conheceram uma popularidade inusitada na corte imperial) e os telescópios. A ciência moderna é uma “invenção” ocidental e chegou à China pelos navegadores portugueses...

Que ciência e tecnologia apesar de relacionadas se podem distinguir fica claro do facto de a China ter visto surgir vários artefactos tecnológicos - a bússola, o papel, a pólvora, etc. – e, apesar disso, ela não ter conhecido nada parecido com o período de “explosão de conhecimento” que foi o Renascimento. A marca da ciência sempre foi a curiosidade, a indagação, o prescrutar do mais além (“non plus ultra” é a divisa na capa do livro “Novum Organum”, de Francis Bacon). Foi, embora misturada com outras, uma atitude de curiosidade, logo científica, que impeliu, na época do Renascimento, os navegadores mais ocidentais da Europa, da ponta da Europa, a ir mais para ocidente, para sul, e depois para oriente uma vez dobrado o Cabo da Boa Esperança. Os chineses, pelo contrário, que se colocavam a si próprios no centro do mundo, não tiveram a mesma atitude de curiosidade. Foram os portugueses que “descobriram” os chineses e não o contrário. Por que foi Colombo quem descobriu a América e não um navegador chinês que descobriu a América? Sabemos hoje que os chineses dispunham nos séculos XV e XVI de meios formidáveis de navegação (alguns dos seus navios “metiam no bolso” as frágeis caravelas lusitanas) e os seus almirantes só não vieram para ocidente por manifesta falta de curiosidade. Houve um que chegou com portentosa frota à costa oriental de África, mas voltou para trás, não passando o cabo pelo caminho inverso. De certo modo, é um acto compreensível: para quê sair do meio - a palavra China significa precisamente meio - se já se está (ou julga estar) no meio do mundo?

Nos séculos XV e XVI, Lisboa era seguramente uma das principais metrópoles do mundo ocidental. A ciência, invenção ocidental, tinha portanto de ser levada para o oriente pelos portugueses, a partir do porto de Lisboa, durante meses e meses de navegação ousada, até chegar ao palácio de Pequim. E, como é sabido, chegou para ficar: hoje a ciência deixou de ser um património exclusivamente ocidental para ser um bem universal, partilhado por todos. A China é actualmente um país que participa muito activamente no esforço científico mundial em todas as áreas e que, graças a apostas certas na tecnologia, tem tido índices de crescimento notáveis. Se houve há quinhentos anos uma passagem do testemunho científico de ocidente para oriente, há hoje uma passagem de testemunho no sentido inverso quando muitos dos melhores alunos de ciência e muitos jovens cientistas nos EUA e até na Europa são chineses. É significativo que na Ásia se encontrem os melhores alunos de matemática do mundo. E que muitos produtos de base tecnológica consumidos no mundo global venham da China.

Chegámos à China, quando Portugal era moderno, com a ciência e a tecnologia na mão. Infelizmente, à expansão e ao avanço seguiu-se a contracção e o atraso. O nosso futuro passa por seguir o exemplo que hoje nos vem do oriente...