Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


08-11-2022

O Brasil sebastianista virou salomônico?


O evangélico que foi às urnas em 2022 ocupa o lugar de um Outro ao qual o país historicamente negou o direito de expressar um projeto de nação. Mas os laços entre religião e política têm raízes profundas entre nós – e temos de encarar esse fato

Escrito por Rodrigo Toniol (*)

As eleições de 2018 e 2022 nos deram momentos de revelação do Brasil e explicitação das imagens que o país produz sobre si mesmo. Em tom geral de surpresa, a nação se confronta com o espelho. E como um narciso desencantado, parece ter saído do transe de uma autoimagem equivocada — do gigante que acordou, entre tantas outras. Agora, como há quatro anos, ao final do pleito das eleições para presidente, o Brasil passa por um estado de vertigem e se encontra diante de si mesmo. Não é uma experiência simples. Como o psicanalista francês Jean Laplanche argumenta, quando desencantado, Narciso pode alternar o objeto de seu delírio e deixar de ver seu Eu belo e passar a olhar o Outro detestável.

Ao longo dos últimos anos, em vertigem, a opinião pública sobre o debate político nacional parece ter identificado o seu Outro: os evangélicos. Como um narciso desencantado, nega que esse Outro seja constitutivo de si e o acusa de responsável pela deformação de sua imagem, antes supostamente bela. Basta que o leitor atente para uma das principais lições exaustivamente repetidas após os fracassos eleitorais das frentes progressistas: “É preciso conversar com eles [os evangélicos]”. Mas, ora, quem éramos antes? E éramos tão belos assim? A constituição dos evangélicos como o Outro da nação passou a ser um tema incontornável e, para compreender o jogo de imagens que sustenta muitas leituras políticas atuais, é preciso retroceder na história e identificar as formas pelas quais os evangélicos, tão numerosos quanto diversos, se tornaram exóticos ao país.

Antes, éramos católicos. Como mostram os dados dos últimos censos, até 2010, éramos um país com 64,6% de pessoas autodeclaradas católicas. A hegemonia da Igreja Católica no Brasil ao longo do século XX não é e não pode ser encarada como um simples dado demográfico. É, antes, resultado de um projeto político de sufocamento da expressão da diversidade religiosa. Na primeira metade do século passado, início da nossa República, a ação repressiva e constitucional contra os cultos mediúnicos no Brasil, fossem eles espíritas ou afro-brasileiros, é um capítulo de um longo histórico de perseguição. Outro, menos difundido, foram as posições e as ações que intelectuais e autoridades civis ou religiosas, como o cardeal Sebastião Leme da Silveira Cintra (1882-1942), que atuou como arcebispo do Rio de Janeiro de 1930 a 1942, tomaram para desacreditar e perseguir os minoritários grupos evangélicos. Na primeira metade do século XX, cristãos não católicos que habitavam o território nacional eram sobretudo estrangeiros, e seus descendentes, identificados com o que chamamos hoje de “protestantismo histórico” — calvinistas, metodistas, batistas, presbiterianos e anglicanos.

Foi a partir da década de 1950 que o universo evangélico brasileiro se diversificou internamente. Surgiram no país e foram importadas novas denominações, tais como a Igreja O Brasil para Cristo (1956), brasileira, e a Igreja do Evangelho Quadrangular, criada nos Estados Unidos e fundada por aqui em 1951. A partir de então, essa diversidade interna aos cristãos não católicos se adensou ainda mais, com dezenas de novas denominações made in Brazil, como: Igreja de Nova Vida (1960), a Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), Igreja Universal do Reino de Deus (1977), Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), Igreja Apostólica Renascer em Cristo (1986) e Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1992). Ainda que litúrgica e teologicamente diversas entre si, essas igrejas têm como traço comum a forte adesão e apelo às classes populares. Muitos dos seus templos estão localizados em bairros periféricos das grandes cidades. Diante desses dados, se faz necessário perguntar: não seriam os evangélicos uma nova forma de fazer referência ao Outro da nação, antes pensado em termos distintos? Falar de identidade evangélica em referência ao indesejável não remeteria à dificuldade de reconhecer que a disciplina se disseminou entre pessoas pobres pelos bancos das igrejas protestantes e evangélicas, e não pelos sindicatos e partidos? Aposto que sim, mas isso não é tudo.

Em um texto de 1987, intitulado As bases de uma nova direita,[1] o sociólogo Flávio Pierucci analisou 150 entrevistas feitas com apoiadores de Jânio Quadros e de Paulo Maluf, em São Paulo. O autor pretendia compreender uma constelação de ideias e valores políticos de direita no cenário posterior à ditadura militar. Nessas entrevistas, chama atenção a pouca presença de evangélicos em meio ao campo da direita paulista. Naquele momento, os religiosos inimigos da direita eram os católicos da Teologia da Libertação, aqueles que lutaram contra o governo militar. Na sua classificação da extrema-direita e da direita fundamentalista, Pierucci, profética e um tanto hiperbolicamente,[2] fez dois comentários sobre os evangélicos e suas afinidades eletivas:

[…] É que sua [a do moralismo] penetração na massa é enormemente facilitada por sua dupla e vantajosa aliança: com a extrema-direita da mídia policial e com a extrema-direita evangélica, esta igualmente midiática (linhagens estas da extrema-direita que também se fazem representar no parlamento) […]. Este novo espaço sociocultural para a extrema-direita, representado por denominações cristãs fundamentalistas, converge no seu anticlericalismo específico com o outro, o anticlericalismo de caserna e delegacia, para acusar a arquidiocese de São Paulo de pactuar com os delinquentes através da política dos direitos humanos.

Lembremos que o texto de Pierucci data do fim dos anos de 1980. Naquele momento, o autor já equacionava os evangélicos com a direita e ressaltava seu amplo uso dos meios de comunicação. O que haveria, então, de específico aos evangélicos do início do século XXI? Esse é o cerne da questão. Em si, os evangélicos não são uma novidade na política nacional. O que mudou foi a forma pela qual alguns de seus líderes religiosos passaram a fazer política, mobilizando instâncias político-partidárias como caminho para seus ideais de nação.

Para compreender as estratégias políticas dos evangélicos, façamos uma analogia. Estamos diante de uma relação de forças como aquela que o historiador francês Jean-Pierre Vernant atribui aos deuses gregos: as dinâmicas do Olimpo envolvem um jogo que mobiliza não somente muitos jogadores, mas também, e talvez sobretudo, vários tabuleiros. No tabuleiro que denomino de salvação, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) é quem tem atuado de modo mais sistemático. Por salvação, é importante que atentemos para as promessas de outra vida no presente e de novos futuros que a IURD oferece. Não é pouca coisa. Até o início da década de 1980, a Universal se definia pelo princípio, então muito difundido, segundo o qual “os crentes não participam de política”. Na década seguinte, este lema foi substituído pelo mote “irmão vota em irmão”. Em 1989, o bispo Macedo, líder da IURD, comprou a Rede Record e, por meio dela, ampliou sua capilaridade e sua estrutura midiática.

Desde então, a política não apenas é encarada como espaço de atuação cristã, como também é trazida para o interior do templo. E assim, a promessa de salvação encontra um terreno importante. Um dos tabuleiros mais relevantes jogados pelos políticos-religiosos do universo evangélico brasileiro sobrepõe a teologia da salvação à teologia do domínio. Na guerra espiritual travada contra as tentações mundanas e demoníacas, encontrar e circunscrever espaços seguros para os irmãos se faz mais do que necessário. A busca por essa Terra Prometida se concretizou em dois templos-domínios que merecem destaque: em 1999, foi fundado o Templo da Glória do Novo Israel, popularmente conhecida como Catedral da Universal, no bairro de Del Castilho, Zona Norte do Rio de Janeiro; e, em 2014, o Templo de Salomão, no Brás, em São Paulo.

A Catedral da Universal conta com nada menos do que um Muro das Lamentações, nos moldes do muro de Jerusalém. Com proporções monumentais e erguido com pedras trazidas diretamente de Israel[3] — afinal, as materialidades carregam a sacralidade —, o Templo de Salomão concretiza uma nova etapa da teologia neopentecostal e seu projeto de territorialização do sagrado. O que importa reter aqui é a opção pela reconstrução do Templo de Salomão: a Universal apelou a um rei e não a um profeta, entre tantas figuras relevantes do Antigo Testamento. Olhar com mais cuidado para Salomão ajuda a entender as reconfigurações do ativismo político evangélico. Mais do que isso, o templo, tal qual nos domínios de Salomão, é o lugar a partir do qual se pensa e se faz a política.

Levando em consideração a centralidade de Salomão nas estratégias espirituais e políticas da IURD, talvez possamos levantar a hipótese da emergência de um novo tipo de messianismo. Vale lembrar que os movimentos messiânicos e suas desconfianças da separação entre religião e Estado tiveram importância popular e política desde o início de nossa vida republicana. Lembremo-nos de Canudos, na Bahia (1896-1897), e de Contestado (1912-1916), no Paraná e em Santa Catarina. Estaria a política brasileira deixando de ser sebastianista e passando a ser salomônica? Seria essa a confrontação por trás da vertigem contemporânea de uma nação que se pensou católica por tanto tempo e se descobre agora evangélica?

Se esse for o caso, continuará sendo o interior do templo o espaço para se debater e fazer política. Para lidar com isso, será preciso assumir que este suposto Outro não é um agente exógeno, mas, sim, parte daqueles que estão dispostos a colocar em seus termos um projeto de nação.[4]

NOTAS

[1]. Flávio Pierucci, As bases da nova direita. Em: Novos Estudos Cebrap. São Paulo, no19, v.3 (dezembro de 1987); p. 26-45. Disponível em: novosestudos.com.br/produto/edicao-19. As aspas desse artigo aqui reproduzidas foram adequadas ao acordo ortográfico mais recente.

[2]. Agradeço a interlocução com Ronaldo de Almeida, de quem empresto algumas das formulações que basearam este texto.

[3]. Desde abril de 2018 tenho elaborado sobre essa aproximação entre o neopentecostalismo, a política brasileira e o judaísmo. Além de outros autores que já haviam insistido sobre isso ainda na década de 1990, mais recentemente o historiador Michel Gherman (UFRJ) e a antropóloga Misha Klein (Universidade de Oklahoma, EUA) também têm-se dedicado ao assunto.

[4]. Agradeço à Marcella Araujo pela interlocução e contribuições para elaboração deste texto.

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*Rodrigo Toniol é professor adjunto do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp.

 

[Fonte: outraspalavras.net]

 

 

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