Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


09-11-2022

“Frente à Cortina de Enganos” de Norberto Ávila editado pelas Letras LAVAdas, patrocínio da AICL


«Falar de Norberto Ávila, esse grande e multifacetado escritor açoriano, nascido em 1936, em Angra do Heroísmo e há bem poucos meses (Maio de 2022) falecido em Lisboa, é uma tarefa quase impossível para mim, que pouco conheço da sua vasta obra, mas que sempre me encantei pela nobreza da sua pessoa e pela simplicidade do seu trato, no meu caso, na troca de mensagens, a propósito de Literatura e destas “Leituras do Atlântico” que ele seguia nas redes sociais.

Foi, pois, com redobrado interesse que li o romance “Frente à Cortina de Enganos” editado pelas Letras LAVAdas, com o patrocínio da AICL – Associação Internacional dos Colóquios da Lusofonia, um livro que o autor dedica a Luiz Fagundes Duarte, como testemunho de muita admiração e amizade.

Cedo me apaixonei por este romance de que já havia lido alguns excertos, nomeadamente no Boletim da Casa dos Açores de Lisboa. De facto, esta obra, de 2003/2004, teve como génese uma comédia do mesmo Norberto Ávila “Fortunato e TV Glória”, escrita em 1995 e estreada no Teatro de Animação de Setúbal em 1998.

Tê-la agora neste convidativo formato é um apelo a conhecer mais uma faceta literária do grande Norberto Ávila, que nos leva aos mais variados ambientes, da Serra da Estrela a Lisboa, da simplicidade dos queijeiros aos meandros do teatro e das televisões, com sátira e ironia quanto baste, tudo enredado numa bem concebida teia de mistérios e enganos, de passados escondidos e a descobrir, de mágoas e enganos nunca explicados, tudo motivado por uma troca que o leitor por si mesmo terá de descobrir.

Aqui nestas “Leituras do Atlântico”, em 21 de Janeiro de 2019, referindo-me ao terceiro número da Revista GROTTA, salientei o quanto me tinha deslumbrado o conto “O Lastimoso caso de Valentino e Passareta”, escrevendo que nele, a palavra flui, as descrições cativam, os diálogos intercalam-se e a surpresa multiplica-se a cada parágrafo lido. Parece que se abre um palco onde a pacata vila de Fervença se torna centro de crime de cemitério e paixões escondidas na cama e no fundo de gavetas. Norberto Ávila, nos seus (então) 82 anos, tem a força de escrita prenhe de juventude e de vida. Confesso que foi, para mim, o melhor conto que li nos últimos anos. E por isso mesmo senti a necessidade de o referenciar aqui.

Dias depois, Norberto Ávila dizia-me: “Tenho em grande apreço a sua elogiosa opinião. Considero-a um precioso estímulo à publicação do livro de contos que me falta. Alguns, disponíveis no meu site, têm seguramente a mesma exigência de escrita, a mesma qualidade. Um abraço, com votos de êxito nas suas funções jornalísticas”. Isto foi escrito em Janeiro de 2019. Norberto Ávila sonhava ainda publicar um livro de contos. Será, pois, tarefa meritória fazer com que sejam reunidos em livro os que andam dispersos e os inéditos. A melhor forma de homenagear este que é, sem dúvida alguma, um dos nossos maiores vultos literários de sempre, será cumprir este desejo.

Como escrevi no início, não tenho coragem nem veleidade de escrever sobre Norberto Ávila. Por isso mesmo considero que melhor do que ninguém, e com a sua autoridade de escritor e dramaturgo, Álamo Oliveira, resume, de forma ao mesmo tempo simples e brilhante, o espírito desta edição de “Frente à Cortina de Enganos” quando escreve o que vem publicado na contracapa deste livro:

«Não se pode lembrar Norberto Ávila sem recorrer à memória de um escritor (sobretudo) dramaturgo, que teve com a escrita urna relação de amor/ desamor, vivendo na cumplicidade de criar estórias com as pessoas de um imaginário quase sempre esotérico mas possível. A criatividade acaba por ser uma necessidade, ou melhor, uma condição para que se possa entender a liberdade que Norberto Ávila utilizou na construção das suas personagens.

O departamento editorial da Imprensa Nacional-Casa da Moeda publicou, em quatro volumes, as dezenas de textos teatrais de Norberto Ávila, sabendo que estava a relevar um dos mais notáveis dramaturgos do século XX em Língua portuguesa. Foi essa a vocação principal de uma vida inteira, que soube desprender-se de pergaminhos «políticos» bem remunerados para, após frequentar a Universidade de Teatro das Nações (1963-1965) em Paris, ficar pela aventura de representar a vida no palco do seu quotidiano. Foi-lhe então possível conhecer a geografia que se deixa dominar pelo poder da ação através das palavras, em verdadeira babilónia de línguas, mostrando, porém, a unicidade dos valores da Humanidade.

Frente à Cortina de Enganos resulta da transformação narrativa romanesca da peça Fortunato e TV Glória. Trata-se, porventura, de um exercício de escrita que Norberto Ávila sentiu realizado sob o mesmo esquema em A Paixão Segundo João Mateus – texto teatral que padece de um ostracismo lamentavelmente ignorante, uma vez que a sua representação traz a marca sensacional do sucesso. Norberto Ávila quedou-se pela morte enquanto colocava uma espécie de ponto final em Frente à Cortina de Enganos – texto a ser publicado pela Editora Letras Lavadas. É uma estória socialmente bem-humorada, pronta a ser lida sob a subtileza de uma escrita que ele oficinava em entrega sábia e paciente. Frente à Cortina de Enganos dá-nos este perfecionismo, dizimando as necessidades cénicas, conquistando o leitor para os domínios da ficção narrativa e para a quietude do que o romance tem de encantatório».

Norberto Ávila, de projecção internacional, traduzido em várias línguas, com peças suas que atingiram centenas de encenações e com uma vivacidade de escrita única e muito própria, é ainda pouco conhecido nos Açores e merece chegar às escolas, por onde tudo deve começar. Estou a pensar na sabedoria popular que se encerra no livro “A Paixão Segundo João Mateus” e que recria costumes e falares da Ilha Terceira. Quem o conhece?

Sobre ele escreveu Victor Rui Dores: “Livro sintomático da multividência açoriana, A Paixão Segundo João Mateus vale por essa experiência linguística que há muito se não via na produção literária açoriana, e vale, sobretudo, pela profunda humanidade das suas personagens. Eis um grande livro para quem o souber ler.”

Por isso mesmo, e passados seis meses sobre a data da sua morte, é de saudar esta edição das Letras LAVAdas, esperando-se que outras se sigam, trazendo ao grande público a magia de um escritor universal mas que teve sempre presente a sua condição de ilhéu, açoriano e terceirense».