Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


22-01-2023

Mia Couto: “Doeu ver como África e Moçambique ficaram tão distantes do Brasil”


 

 

   
 

Mia Couto: “Doeu ver como África e Moçambique ficaram tão distantes do B...

Joana Oliveira

O escritor moçambicano conversa com o EL PAÍS sobre escrita, política e o ciclone Idai, que quase destruiu sua c...

May 2, 2019 · O escritor moçambicano conversa com o EL PAÍS sobre escrita, política e o ciclone Idai, que quase destruiu sua cidade natal e demorou a ser notado pelos brasileiros.

Antes de aprender a ler livros, Mia Couto (Beira, Moçambique, 1955) aprendeu a ler a terra. A grande diversão de seu pai, um poeta que teve que exilar-se de Portugal devido a perseguições políticas, era passear com os filhos ao longo da linha do trem para buscar pequenas pedras brilhantes no meio da poeira. "Ele ensinou-nos a olhar para as coisas que pareciam sem valor. E, sem nunca nos obrigar a ler, ensinou-nos a ler a vida", conta António Emílio Leite Couto —Mia é um pseudônimo— em uma sala de reunião de um arranha-céu de São Paulo. Com uma camiseta azul (um tanto amassada) da mesma tonalidade de seus olhos e uma calça jeans, o escritor parece haver caído de repente no espaço onde, no recinto ao lado, homens e mulheres em blazers e paletós discutem negócios. Por vezes, as vozes do grupo elevam-se, ainda que sutilmente, mas o suficiente para contrastar com o tom monocórdio e pausado do escritor moçambicano, que, em sua fala tranquila, constrói elucubrações literárias e metáforas a cada segundo.

O escritor moçambicano visitou diversas capitais do Brasil para falar sobre a obra-prima do brasileiro, Grande Sertão: Veredas (1956), que ganhou uma nova edição da Companhia das Letras. Numa dessas vindas, conversou com o EL PAÍS, em São Paulo, sobre a influência desse livro em sua escrita, sexismo na literatura e sobre como as palavras reinventam-se e seguem vivas, firmes, mesmo quando tudo ao redor se destrói.

Pergunta. Quando você conheceu a literatura de Guimarães Rosa?

Resposta.  Ele chegou a mim através de Luandino Vieira, um escritor angolano que me influenciou muito. Meu primeiro livro de contos foi muito marcado pela escrita do Luandino, que deixava que as vozes da rua entrassem na história e fossem elas próprias personagens. E um dia ele falou comigo e disse: “Vai até a fonte, que está no Brasil. Eu mesmo fui influenciado pelo Guimarães Rosa”. Em 1985, quando Moçambique vivia uma guerra civil que nos fechava para o mundo, eu não conseguia ter ligação com o Brasil, mas um amigo trouxe-me uma fotocópia d’A terceira margem do rio. Eu estava no processo de criar meu segundo livro de contos, e aquilo foi como se eu tivesse descoberto a própria vocação de escrever. Esse foi meu primeiro grande contato com Guimarães. Depois fiquei anos tentando voltar e encontrá-lo em livros e mais tempo ainda demorei em chegar a Grande Sertão: Veredas. E, quando cheguei a ele, mesmo tendo passado pelos contos, o primeiro encontro não foi fácil. Eu acho que tinha medo, continuo tendo. É como se de repente houvesse uma revelação, não sobre o que ele estava contando, mas sobre mim próprio.

P. Qual foi essa revelação?

R.  O que o Guimarães fez foi uma abertura de caminho, uma espécie de luz verde, uma autorização, dizendo “você pode ir por este caminho, pode-se fazer literatura assim”, deixando que as vozes chamadas não cultas, que as vozes das pessoas do campo pudessem remexer na história e no próprio narrador. Quando cheguei a Grande Sertão, eu já estava embriagado dessa literatura brasileira.