Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


23-08-2007

Corsários da Nobreza Maria Eduarda Fagundes


Era 1589, no Mar dos Açores o corso e a pirataria estavam no auge. Profissões desde antiga Grécia toleradas, principalmente em tempos de guerra, como desculpa para enfraquecer o inimigo, com aval dos reis, ou para enriquecimento fácil, através da pilhagem desautorizada de foras da lei. Em geral usavam marinheiros desertores, descontentes ou fugitivos, que conheciam os mares e suas rotas, para integrar as suas hostes. Era gente ousada, destemida e cruenta que enfrentava a morte no dia a dia, em busca de riquezas.  Inglaterra, França, Holanda, Argélia e as terras do Sol Nascente tinham homens nessa labuta, até os portugueses, principalmente nas Índias, usavam desse expediente.

As naus que vinham das Américas e do Oriente, carregadas de riquezas e especiarias, pesadas e pouco protegidas, seguiam uma rota que passava pelas ilhas dos Açores, onde faziam aguada e se abasteciam de provisões. As ilhas, habitadas por gente pacífica enfraquecida pelas recentes lutas pela disputa do trono português e que tinha para sua defesa poucos soldados e armamentos, eram um petisco para a pirataria em geral e para o corso inglês, que via a oportunidade de minar as forças espanholas, suas rivais, que naquele tempo se instalaram no arquipélago açoriano.

 

Era primeiro de agosto, pleno verão, o sol estava a pino e o mar calmo de um azul forte e cristalino, sem nuvens no horizonte. Ao largo da Ilha de São Miguel, a frota de 13 navios do Conde de Cumberland velejava à cata de navios que faziam a carreira comercial das Américas e das Índias. Tiveram sorte. Da proa da nave capitânia Vitória, o comandante, através da sua luneta, espreitava o movimento das duas naus espanholas, carregadas de vinho e azeite, que se refrescavam no ancoradouro. Em terra , um tiro de canhão troou, ameaçando os olheiros, que sorrateiros mantiveram-se longe dos olhos e do alcance dos pesados projeteis do Castelo-fortaleza. Esperaram pacientemente a noite. Protegidos pelas sombras, entraram no Porto e após débil resistência pilharam a sua presa.  Não se satisfizeram. Continuaram na sua ronda, à espera de outra nau incauta que lhes desse mais riquezas. Quatorze dias após, ainda no Mar dos Açores, procuraram água e mantimentos, com os habitantes da Ilha das Flores. Pagavam com azeite e vinho...! Em ilhas tão distantes e isoladas, sem defesa, no meio do Atlântico, melhor era fazer negociações. O preço de uma recusa poderia sair mais caro. Alguns tripulantes que desceram a terra, curiosos inspecionaram a pequena ilha. De volta levaram mantimentos e noticias que havia uma frota espanhola na Ilha da Terceira. Zarparam a toda pressa. Mas ao passar pela Ilha do Faial, uma das embarcações se aproximou demasiadamente do Porto da Horta, em reconhecimento. Foi recebida como inimigo, com um tiro de canhão certeiro, saído das ameias do castelo–fortaleza de Santa Cruz.  Atingida, não gravemente, retirou-se sem responder ao ataque e reuniu-se à frota que partiu em direção à Terceira, bordejando outras ilhas. Não queriam desperdiçar tempo e munição naquele momento.

 Ao chegarem ao largo da Ilha Terceira, decepcionado, o Conde de Cumberland constatou que não havia mais nada no Porto. Porém o espírito de revanche lembrou-lhe do episódio no Faial. Havia uma alternativa para pilhagem, a ilha que tão mal o recebera. A 6 de setembro a frota chegou à ilha. Para sorte deles, na baia do Porto da Horta, uma nau da Índia e outras sete embarcações, ancoradas, se reabasteciam. Capitaneando a nau Vitória, guarnecida por 80 peças de artilharia, aguardou a proteção da escuridão da noite para se aproximar e atacar as presas. A luta demorou pouco mais de uma hora. Os espanhóis e portugueses, derrotados, atiravam-se ao mar, na tentativa de atingir a terra a nado, fugindo do inimigo.  Dias depois da rapina, ainda ocupando as águas do porto, o Conde de Cumberland enviou emissários a terra. Exigia a rendição da fortaleza de Santa Cruz, que aquela altura não tinha carga e homens suficientes para enfrentar o poderio da esquadra inglesa, e um resgate para poupar as vidas dos habitantes e a vila. O governador e os capitães da Ilha do Faial responderam que não tinham mais o que entregar, pois havia poucos anos tinham sido saqueados pelos espanhóis (1583) quando das lutas para a ocupação da coroa portuguesa, em defesa do Prior do Crato. Mas se quisessem mantimentos teriam que vir a terra fazê-los com trabalhos.  O inglês não gostou da resposta e decidiu bombardear a fortaleza. Invadiu e atacou a vila, pondo em fuga a população aterrorizada para as matas do interior da ilha. Quando tomaram a fortaleza havia lá somente sete homens, o vigário e os capitães Gaspar Dutra, Tomás Porrás, Domingos Fernandes e João Francisco. Apesar dos civilizados e débeis protestos do nobre conde, os seus marinheiros- piratas saquearam casas e igrejas. Não satisfeitos exigiram também 20 mil cruzados para se retirarem poupando do fogo a vila. Contentaram- se com os 2 mil que lhes conseguiram arranjar com muito custo de particulares e com as pratarias escondidas das igrejas. E para demonstrar a “civilidade britânica”, antes de partir, Cumberland deu um lauto jantar a bordo da sua nau capitania e mandou convidar toda a população, com exceção do governador Diogo Gomes.  Aceitaram o convite quatro indivíduos desbriosos que a história poupou os nomes, mas que diz que foram muito bem tratados. Receberam na ocasião uma carta simbólica em que os ingleses prometiam não mais atacar a vila. Carta que mostrou não ter nenhuma valia naqueles tempos de pirataria, pois anos depois, no verão de 1597, a Horta  foi novamente atacada e invadida, desta vez pela frota de Conde de Essex, mais exatamente pelo seu imediato, o capitão Walter Raleigh, que lhe tirou a honra da ocupação e destruição da vila. Coisa que ele nunca lhe perdoaria.

 A história se repetia.  A população mais uma vez debandou esbaforida para as matas e esconderijos dentro do coração da Ilha. Seguiu-se um ato de barbarismo que os historiadores ingleses esqueceram de contar, mas que a narrativa faialense deixou registrada na alma e na história daquela gente. Saques, destruição, cenas dantescas e macabras de abertura de sepulturas, à cata de tesouros supostamente escondidos, de fogueiras dentro das naves das igrejas, roubos, quebradeiras, cenas de pirotecnia pela ilha inteira. O que não puderam levar destruíram. Despedaçaram móveis, queimaram casas e cartórios, arruinaram arquivos e com eles boa parte da memória do Faial. Ao partirem deixaram um rastro enfumaçado de destruição. Da Matriz, das Igrejas da Praia do Almoxarife, da Conceição, dos Flamengos, e do Convento São Francisco, sobraram as paredes denegridas pelas labaredas. A horda distraída no seu festim, não percebeu que ao largo, no horizonte, passava a frota vinda das Índias, em direção à Terceira, carregada de riquezas que eles tanto ambicionavam.

O Conde Essex, através do seu imediato, Raleigh, tinha dado uma grande lição àqueles míseros ilhéus que tiveram a ousadia de recebê-lo à bala, para defender o pouco que ainda tinham de seu!

* Maria Eduarda Fagundes   Uberaba 16/08/07