Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


09-02-2023

MIGUEL SOUSA TAVARES, no Expresso "O envio dos tanques Leopard para a Ucrânia representa uma mudança essencial "



MIGUEL SOUSA TAVARES,

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no 'Expresso',

com ilustração de Hugo Pinto

«O envio dos tanques Leopard para a Ucrânia representa uma mudança essencial e a dois níveis no papel dos países neutros, embora amigos ou aliados da Ucrânia. Por um lado, não se trata mais de enviar armas para ajudar Kiev a defender-se da invasão russa e a evitar que, como nos contam para adormecermos, depois da Ucrânia, Moscovo venha por aí fora até à foz do Tejo, mas sim de armas ofensivas que permitam a Kiev assegurar a tal vitória que, segundo o secretário da Defesa norte-americano, é o objectivo final da guerra e garantirá que nunca mais a Rússia se atreva a aventuras semelhantes, ainda que provocada. E, por outro lado, não sendo uma decisão colectiva, tomada no âmbito da NATO (o que implicaria o desencadear da Terceira Guerra Mundial), significa apenas uma decisão unilateral de cada país, tomada por vontade própria.

Assim sendo, e juntando os nossos quatro leopardozinhos — dos 37 que temos e dos 12 operacionais — ao contingente de 120 já garantidos a Zelensky, o que Portugal está na iminência de consumar, para todos os efeitos legais e políticos, é uma declaração de guerra à Rússia, através do seu envolvimento directo no conflito. E a seguir aos Leopard, irão talvez os F-16, que Zelensky logo tratou de pedir mal obteve os tanques, naquelas suas emissões televisivas matinais onde todos os dias reclama novas armas que, mais tarde ou mais cedo, lhe são dadas. Não sei mesmo se com o entusiástico prosseguimento da guerra, não teremos a seguir de avançar com os nossos submarinos e as fragatas MEKO — na certeza, porém, de que, tal como sucede com os tanques e os F-16, também aí Zelensky terá meia desilusão: sucede que, se as nossas Forças Armadas gostam de ter ao serviço os melhores brinquedos disponíveis no mercado, como em tempos reportava um embaixador americano, rapidamente a maior parte deles são armazenados por falta de peças sobresselentes, falta de interesse superveniente ou falta de respeito pelos contribuintes.

Como quer que seja, declarámos guerra à Rússia. Pelo que, se um dia destes, essa fragata russa que anda aí pelo Mediterrâneo, à passagem por Lisboa, se lembrar de nos saudar com uns quantos mísseis, não fiquem chocados. É uma hipótese altamente improvável, mesmo nas sapientes conjecturas da dupla Rogeiro/Milhazes, mas, em termos de jus belli, não haveria nada de que reclamar. O que eu reclamo é da forma como nos envolveram neste processo, como se fosse a coisa mais banal do mundo.

Em primeiro lugar, foi verdadeiramente surpreendente e humilhante que a primeira fonte que noticiou o envio de tanques portugueses para a Ucrânia fosse o próprio Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em conferência de imprensa. Fazendo-o sem que a hipótese tivesse ainda sido sequer veiculada aqui e sem que a Alemanha, fabricante dos Leopard, tivesse dado autorização para a sua reexportação para um cenário de guerra, Zelensky mostrou o quanto a sua vontade são ordens para o Governo português.

Em segundo lugar, é extraordinário que uma decisão desta relevância seja decidida sem passar pela Assembleia da República (onde tantas trivialidades são discutidas assanhadamente), pelo Conselho de Estado (tantas vezes convocado para debater o sexo dos anjos), e mesmo sem uma palavra do comandante supremo das Forças Armadas, Marcelo Rebelo de Sousa, a quem nenhum assunto, por mais ridículo que seja, passa sem comentário. Sem uma explicação pública do primeiro-ministro e nem sequer o habitual abanar de cabeça concordante do ministro figurante dos Negócios Estrangeiros. E, claro, sem qualquer manifestação de interesse em debater o assunto pela opinião pública, mais interessada em debater há 15 dias a invasão do palco do São Luiz por uma transloucada sexual em defesa do monopólio dos papéis teatrais pelas diversas espécies sexuais contemporâneas e futuras.

E, enfim, é para mim espantoso que António Costa, que vive a desculpar-se com a inflação e outros problemas importados por via da guerra — o que é verdade — não peça aos manifestantes que estão na rua, os professores e outros, a todos os portugueses descontentes e em dificuldades, que vão antes manifestar-se em frente às embaixadas dos Estados Unidos, da Rússia, da Ucrânia, da representação permanente da UE, exigindo o fim da guerra e a abertura de negociações de paz. Sei bem que somos um pequeno país cuja voz vale o que vale. Mas se, apesar de pequenos, servimos para enviar tanques e aviões para a guerra, também servimos para perguntar até quando é que teremos de pagar por ela, enquanto vemos os fabricantes de armas a fazerem fortunas, a economia americana a prosperar enquanto a Europa definha e se ajoelha, a Ucrânia a ser destruída paulatinamente, o combate às alterações climáticas a retroceder anos e os ignorante úteis ou fingindo-se de tal a proclamar que não há outro caminho senão continuar a guerra indefinidamente. Ao prestar-se a enviar os Leopard para a Ucrânia — e, logo depois, os F-16 e o mais que Zelensky exigir, até às armas nucleares —, António Costa não pode deixar de estar consciente da contribuição, ainda que relativamente pequena, que Portugal está a dar para a escalada da guerra e a sua continuação sem fim à vista. Assim, é hipócrita queixar-se mais da guerra: podia era meditar no exemplo do seu amigo Lula da Silva, que, solicitado a enviar também tanques para Zelensky, ofereceu-se antes para fazer parte de um grupo para mediar a paz. Mas isso é tudo o que por aqui, na Europa, é proibido sequer pensar: é o novo TINA (There Is No Alternative).»