Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


20-03-2023

Do luso-tropicalismo como uma heterodoxia dos nossos tempos


Ver o luso-tropicalismo como mera descrição da realidade, do império ultramarino português, e não como um paradigma, um ideal a cumprir, é uma deturpação ou equívoco.

Renato Epifânio

Renato Epifânio Professor Universitário; Membro do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto, da Direcção do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, da Sociedade da Língua Portuguesa e da Associação Agostinho da Silva; investigador na área da “Filosofia em Portugal”, com dezenas de estudos publicados, desenvolveu um projecto de pós-doutoramento sobre o pensamento de Agostinho da Silva, com o apoio da FCT: Fundação para a Ciência e a Tecnologia, para além de ser responsável pelo Repertório da Bibliografia Filosófica Portuguesa.

5 de Março de 2023

 

Se há teoria que foi e continua a ser, nos tempos de hoje, grosseiramente deturpada é a do “luso-tropicalismo”, de Gilberto Freyre. O equívoco de base é (quase) sempre o mesmo: ver essa teoria como uma mera descrição da realidade – em concreto, do império ultramarino português – e não como um paradigma, um ideal, a cumprir.

Tendo sido perspectivado como uma mera descrição da realidade, o “luso-tropicalismo” foi, fatalmente, (mal)visto como uma caução do império ultramarino português. E o próprio Eduardo Lourenço não escapou a esse equívoco de base, ao ter-se referido a ele como “um nefasto aventureirismo intelectual, incoerente e falacioso” (A propósito de Freyre (Gilberto), Suplemento Cultura e Arte de O Comércio do Porto, 11/7/1961).

 

Neste ponto, Eduardo Lourenço caiu no mesmo equívoco de base daqueles que, ainda hoje, renegam a obra de Almada Negreiros – por ter sido, inequivocamente, um artista do regime do Estado Novo – ou o Fernando Pessoa da Mensagem – por ter sido, igualmente de forma inequívoca, um protegido de António Ferro.


Curiosamente, bem mais compreensivo foi Eduardo Lourenço quanto ao “movimento da ‘filosofia portuguesa*, ao tê-lo caracterizado como uma “reacção, em boa parte justificada, contra o pendor mimetista e o consequente descaso que ele implica de inatenção a nós próprios (O Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do pensamento português, Lisboa, D. Quixote, 1982 (2ª), p. 73).

 

 

Perspectivado como uma mera descrição da realidade, o “luso-tropicalismo”, obviamente, suscita as mais ambivalentes reacções. Mesmo o tão celebrado fenómeno da miscigenação padece de uma ambivalência de base – por um lado, foi um fenómeno positivo, por ter promovido o cruzamento étnico, ao contrário do que aconteceu noutras experiências imperiais europeias (sendo que este facto não deveria ser de todo desprezível, como em geral acontece); por outro lado, tudo isso aconteceu sob uma hegemonia pré-determinada – não só étnica como de género.

Por regra, como sabemos, esses cruzamentos deram-se entre homens “brancos” e mulheres “negras”.E as poucas excepções que existiram foram apenas isso: excepções que confirmam  a regra.

Ora, nestes nossos tempos em que a separação étnica é de novo agitada como bandeira político-social – desde logo, por movimentos de “extrema-direita”, mas também por movimentos de “extrema-esquerda”, que defendem a impossibilidade de qualquer sã convivência étnica –, o “luso-tropicalismo” de Gilberto Freyre –pse perspectivado como um paradigma, o ideal, a cumprir, e não já como uma mera descrição da realidade – é, decerto, uma visão a ter em conta nos tempos hoje, em prol dessa possível e desejável sã convivência étnica. omo um paradigma, o ideal, a cumprir, e não já como uma mera descrição da realidade – é, decerto, uma visão a ter em conta nos tempos hoje, em prol dessa possível e desejável sã convivência étnica. Num tempo em que se chega a defender publicamente que um “branco” não pode sequer traduzir um texto de um “negro”, a visão de Gilberto Freyre é decerto heterodoxa e, por isso, mais pertinente do que nunca.



https://www.publico.pt/2023/03/05/opiniao/opiniao/lusotropicalismo-heterodoxia-tempos-2041178?fbclid=IwAR0b7bFIg5LQpMDRUn7l594eFy0FTw5_2lqkduwvlaR-mkF7J7PxyrOnpSU