Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


22-02-2008

O Fantasma de Chet Baker Márcia Frazão


Eu devia ter desconfiado quando de repente a bolacha negra surgiu do nada naquela velha loja de livros velhíssimos. O que faria uma bolacha negra no meio de poeira e traças, exibindo-se em balé de trinta e três rotações? Seria algum recado da cantora de blues que se mostrava, mostrava não, se insinuava, nas últimas frases da Náusea de Sartre? Mas Sartre já tinha morrido e os anjos já o tinham entupido de sal de andrews! Simone já estava ao seu lado e já tinham até alugado um conjugado no céu! Não, não era a cantora de jazz nem o estômago delicado do filósofo. A bolacha vinha de algum lugar do Além que ficava além de minha nauseada imaginação.

Está certo, confesso, eu andava meio nauseada, meio desligada, tão meio desafinada que entrara na loja à cata de um livro qualquer de auto-ajuda  - pode rir, é pra rir mesmo - de qualquer livro de no máximo oitenta páginas burramente distribuídas em cento e oitenta parágrafos que dissessem absolutamente nada. Nada do ser e do nada nem de filosofias que me confirmassem que não há nada mais cruel que ter idéias na cabeça. Eu precisava de um tudo estofado como um sofá das Casas Bahia, de preferência em suaves prestações, comprado com um cartão de crédito que o livrinho certamente me ensinaria como obter...

Foi no intervalo entre o desejo de me perder de "si" e me achar em "dó" de mim financiado pela Fininvest ou qualquer coisa que não valha que a bolacha rodopiou aos meus pés. Estiquei os olhos e lá estava Chet Baker, o fantasma que não era de Bakersville, mas uivava para a lua com um trumpete. Lá estava ele, saído do Nada da cantora da Náusea, do Uivo de Guinsberg e das estradas de Kerouac. Me olhou com aqueles olhos de belas heroínas e me chamou para dançar. Dançar?! Eu estava ali para encontrar o Graal da mediocridade em suaves prestações! Eu já tinha jogado fora todos os meus livros e os meus discos de jazz. Agora eu queria mais era jazer numa vida despreocupada, embalada por churrasco, cerveja e piadas idiotas. Eu queria aprender de cor todas as marcas de carros (parei no chevete), aparelhos eletrônicos e tralharias digitais. E lá me vinha Chet Baker numa hora dessas me chamar para dançar? Ele e sua heroína que continuassem a girar em trinta e três rotações. E que engolissem a agulha de diamante! Eu mesma já tinha jogado a vitrola fora...

Mas por artes da heroína de Chet ou do ácido lisérgico que os anjos cismam em misturar ao ar dos poetas, a bolacha começou a tocar sozinha. O que fazer? Como não fugir de "si" no "sol" de tanta música? E foi naquele segundo em que Chet começou a tocar que desisti da mediocridade medíocre de vencer na vida com titica na cabeça e, uivando os primeiros versos do Uivo, coloquei fogo na prateleira dos livros de auto-ajuda. Levei Chet para casa e dançamos a noite toda ao som de My Funny Valentine.

 

*Marcia Frazão, escritora, Nova Friburgo, RJ,  15  fevereiro 2008