Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


01-05-2008

O Cacimbo e a estação das chuvas Inácio R Andrade


POSTAIS DO ÁLBUM DA MEMÓRIA

 

Inácio Rebelo de Andrade (*)

O CACIMBO E A ESTAÇÃO DAS CHUVAS 

 

 

Todos os anos era assim: o Cacimbo chegava em Maio e ia até ao fim de Agosto. Eram quatro meses e meio que não deixavam saudades, porque tudo o que tinha vida (as pessoas, os animais e as plantas) parecia ficar suspenso, como que à espera de recomeçar.

A mil e setecentos metros de altitude, Nova Lisboa evidenciava especial-mente os efeitos desse período: as madrugadas frias de enregelar os ossos, o céu limpo de nuvens, o ar seco que soprava por todo o lado.

                              

                                                       

 

Junho era o mês pior. Do solo nu que abundava ainda por muitos sítios, a poeira subia e tomava conta das ruas, entrava em casa pelas frinchas das portas e das janelas, deixava a sua marca nas superfícies dos móveis.

Quem viera do Minho ou do Algarve, de Trás-os-Montes ou do Alentejo, dizia que o Inverno tinha chegado. Mas à parte as madrugadas frias, a compa-ração devia-se apenas à saudade trazida da terra natal, porque a limpeza do céu, a secura do ar, a poeira que subia do solo e tomava conta das ruas não acon-teciam de facto em Portugal naquela estação.

Depois de Junho, Julho; depois de Julho, Agosto; depois de Agosto, Se-tembro.

Em Setembro, o tempo mudava: as madrugadas não eram mais frias, o ar não era mais seco, o céu cobria-se de nuvens densas e cinzentas, a poeira assentava. Cada dia mais elevada, a temperatura subia, até que numa manhã (ou numa tarde, ou numa noite), quase de repente, de um minuto para o outro, relâmpagos aos ziguezagues e trovões ribombantes traziam consigo a primeira chuva.

A água caía em bátega, como que despejada lá de cima de um alguidar imenso: alagava tudo (os quintais, os jardins, as ruas, os passeios); a caminho das valetas, avançava em cachão, veloz e rumorosa. Envolta em espuma, arras-tava no percurso o lixo depositado.

Outra vez de repente, também de um minuto para o outro, a chuva parava: tão depressa vinha, tão depressa ia.

Mas depois... Ah!, mas depois..., depois deixava no ar um cheiro a terra húmida, que entrava nas narinas e despertava nas pessoas lembranças ador-mecidas; um cheiro que se sentia uma vez e não se esquecia mais; um cheiro forte, bom, promissor, de reinício; um cheiro de capim verde quase a brotar.

Para além dos limites da cidade, lá para os lados da Sacaála, do Cambiote ou da Quissala, à beira da estrada, esse cheiro mandava as mulheres espalmar os filhos nas costas, pegar nos cabos em V do etemo, dobrar os rins na lavra horas a fio, armar as bipangas e semear o milho.

Depois de Setembro, Outubro; depois de Outubro, Novembro; depois de Novembro, os meses seguintes até Abril.

Depois de Abril, Maio: o Cacimbo estava aí outra vez.

Depois Junho, Julho, Agosto e Setembro: a chuva de novo, o cheiro a terra húmida (tão forte, tão bom, tão promissor, tão de reinício como no ano an-terior), o cheiro de capim verde quase a brotar.

 

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(*) Inácio Rebelo de Andrade, in Quando o Huambo Era Nova Lisboa, Vega, Lisboa, 1998 (Colecção «Palavra Africana) (versão revista pelo autor)

                                                                            

                                                                          

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