Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


17-12-2001

Contradições e Cegueiras Por Abdul Cadre


... Tudo isto é Fado

CONTRADIÇÕES E CEGUEIRAS
 
Abdul Cadre
 
Na Austrália, faz uns quinze dias, uma professora foi despedida por ensinar aos seus pupilos que o Pai Natal não existe. Penso que não cabe a um mestre-escola interferir nas crenças que a miudagem traz de casa, mas talvez seja excessivo e pouco natalício deixar a pobre senhora em míngua de ceia.

O problema do Pai Natal nunca assim se me havia posto, nem foi hábito sequer na minha família acreditar ou contrariar a crença. Pessoalmente, sempre embirrei com a figura e com a mitologia que lhe vai agarrada ao saco e nunca consegui compreender como é que a generalidade dos cristãos pôde sacralizar tal figura claramente pagã. Certamente que por aí não se torna o mundo pior, mas também não fica melhor, convenhamos. Para muitos, o Pai Natal terá a ver com S. Nicolau, padroeiro da Rússia, protector das crianças, dos eruditos, das virgens, dos marinheiros e dos comerciantes e terá nascido no território da actual Turquia, no princípio do século IV, mas o que parece certo é esta crença piedosa nos ter chegado por via escandinava. No princípio, era assim como que um duende verde, foi-se transformado num avozinho carinhoso e acabou nesta figura arredondada e popular que a Coca Cola tornou vermelha e fez parecer-se com a garrafa do produto. Esta é a principal razão pela qual eu embirro com este senhor que dá melhores brinquedos aos ricos do que dá aos pobres. Não quero falar sequer do sacrilégio que é secundarizar o nascimento que se devia comemorar, para andarmos com as nossas crianças, de hipermercado em hipermercado, a consumir por obrigação e a tirar fotografias com uns patuscos com as caras cheias de algodão e trajando fatos de aluguer.

Mas os hábitos e as crenças têm lógicas que nenhuma lógica pode explicar e quando se tenta explicar sai papo furado, como diria o brasileiro. Lembram-se do «a dois mil chegarás, mas de dois mil não passarás» que logo nos sublinhavam com ar sério: «está na Bíblia». É claro que não está nem nunca esteve na Bíblia, nem quem afirmava seria dado à leitura das Escrituras.

Diz-se amiúde que o pior cego é aquele que não quer ver e, dum modo geral, atribui-se o anexim à literatura evangélica primeva, mas a verdade é que não é bem assim...

Ora vejamos: em 1647, em Nimes, na França, o doutor Vicent de Paul D’Argent, não sei se por espírito científico se por pena dum aldeão chamado Angel, cego de nascença, fez o primeiro transplante de córnea. Foi um sucesso total e um espanto para a medicina do tempo. O pior veio a seguir: o paciente ficou tão horrorizado com o mundo que então passava a ver que desatou a exigir que o distinto cirurgião lhe arrancasse os olhos. Bom e belo era o mundo que ele imaginava, não este que lhe entrava pelos olhos dentro. A coisa caiu nos tribunais, chegou mesmo ao Vaticano e Angel acabou por ganhar a causa e ficar para a História como o cego que não quis ver.

Será que os nossos olhos vêm os mundos imaginados por Angel. nenhuma cirurgia nos coube e estamos bem assim... sem precisar de arrancar os olhos?