Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


01-11-2004

Historiografia sobre os Judeus no Brasil


por Anita Novinsky


Prezados senhores, colegas e amigos

Dividi esta palestra em três partes. Na primeira, farei uma reflexão
sobre um fenômeno do passado brasileiro, o marranismo, mostrando que
meu conceito difere do usualmente empregado; na segunda parte vou
mostrar como a questão dos marranos e judeus entrou no imaginário de
dois de nossos maiores escritores, Machado de Assis e Castro Alves;
na terceira parte falarei sobre um projeto: a criação de um
Laboratório de Estudos sobre a Inquisição, a Intolerância e o Racismo
no Brasil.

Numerosos estudos foram feitos nos últimos anos sobre os marranos
portugueses que se dispersaram pelos quatro cantos do mundo. Em todos
eles encontramos uma grande lacuna: o Brasil. Apenas para dar um
exemplo: recentemente foi publicada em Israel uma coletânea de
ensaios, em dois volumes, com o título The Sephardi Legacy[1] O
Brasil está completamente ausente. Também na historiografia
brasileira, com exceção das obras específicas sobre o assunto, os
autores que trabalharam sobre a questão da cultura brasileira, como
Darcy Penteado, Carlos Guilherme Mota e outros, não se referem nem
aos judeus nem aos marranos. É como se na história do Brasil eles
nunca tivessem existido. Entretanto, hoje se confirma o que já me
havia dito o saudoso Lourival Gomes Machado, "que sem a história dos
cristãos-novos não se pode escrever a história do Brasil."

A história dos cristãos-novos, judeus ou marranos no Brasil difere
fundamentalmente da história dos conversos na Europa e somente pode
ser entendida se inserida no contexto colonial, que ninguém
caracterizou melhor do que nosso grande mestre Gilberto Freyre. Os
portugueses de origens judaicas passaram no Brasil por experiências
totalmente diferentes dos judeus que ficaram em Portugal ou que se
expatriaram pelo mundo. Mesclaram-se com a população nativa e também
com os negros e entraram intimamente na composição étnica do povo
brasileiro. Encontramos entre eles místicos, religiosos e
messiânicos, mas também violentos aventureiros como os bandeirantes,
que hoje sabemos, eram em grande parte de origem judaica. Do ponto de
vista psicológico, os brasileiros cristãos-novos mantiveram algumas
características provenientes de sua condição de excluídos, que marcou
seu comportamento e sua filosofia de vida.

Vou procurar transmitir-lhes o meu conceito de marranismo, que
basicamente difere da conotação que lhes tem dado a maioria dos
historiadores. Em primeiro lugar creio que devemos abandonar o
estreito e tradicional conceito que identifica o marranismo com o
criptojudaísmo. É preciso despir o marranismo de seu conteúdo
religioso.

Marranismo foi um fenômeno extremamente complexo, paradoxal e
diversificado, que começou na Espanha e Portugal e se transferiu para
o Brasil, onde adquiriu nuances muito específicas às quais já me
referi em outros trabalhos. Não houve um marranismo, mas muitos
marranismos[2] . O brasileiro marrano, que atravessou nossa história
colonial, expressou-se dialeticamente, não só quando cumpria alguns
preceitos religiosos judaicos, mas também sua laicidade.

Como disse o famoso filósofo Levinas, o judaísmo não se reduz a uma
mera religião, nem a um Estado, nem a uma nação, nem a uma cultura,
nem a uma Ética, nem a um fenômeno existencial, mas é tudo isso ao
mesmo tempo.

O Brasil foi o país que recebeu o maior número de imigrantes
portugueses marranos. No estado em que se encontram as pesquisas e os
estudos demográficos realizados sobre vários estados do Brasil,
podemos afirmar que aproximadamente 25 a 30% da população branca
nacional era constituída de marranos. Essa média se aplica a Bahia,
Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraíba[3] . Sobre Pernambuco, Goiás e
São Paulo, os estudos estão em andamento. Mas devemos lembrar que
essa porcentagem não inclui os cristãos-novos que lograram diluir-se
em meio às elites locais, que fugiram ou se embrenharam pelas selvas
brasileiras, mas apenas os que ficaram registrados nos livros
inquisitoriais.

O exame de milhares de páginas manuscritas referentes à vida colonial
me levaram a fazer uma revisão crítica do tradicional conceito de
marranismo e me aproximar do conceito de submarranismo e pós-
marranismo tão sugestivamente proposto pelo filósofo francês Edgard
Morin[4] . Morin conta que começou a entender a complexidade e
fecundidade do marranismo quando escreveu o Prefácio do livro Les
Juifs d´Espagne[51] , onde coube a mim os dois capítulos referentes a
Portugal e ao Brasil. E Morin diz textualmente o que me atraiu no
marranismo foi a experiência psicológica complexa que traz consigo
uma dupla identidade, dilacerante e eventualmente criadora, fermento
da superação dos dogmas das duas religiões, resultando numa postura
interrogativa e crítica em Montaigne e na busca de novos fundamentos
em Spinoza[6] .

Mas Morin foi mais longe ainda e estendeu sua concepção de marranismo
até Karl Marx e Sigmund Freud, mostrando que esses judeus, como os
marranos, viviam num mundo ao qual não podiam pertencer. A
experiência marrana pode assim ocorrer com os judeus, em qualquer
tempo e em qualquer lugar.

O conceito de pós-marranismo empregado por Morin levou-me a refletir
sobre a vida de um dos maiores poetas alemães do século XIX, Heinrich
Heine[7] , que permaneceu marrano por toda a sua vida. Como outros
marranos do Império Luso colonial,, Heine quis se adaptar a um mundo
que não o aceitava. Foi forçado a converter-se para poder penetrar no
ambiente culto e aristocrático alemão. Heine, no fundo, nunca
conseguiu se integrar, apesar de sempre sentir-se alemão. Nutria um
profundo amor pela Alemanha, como os portugueses, que durante
gerações, mesmo no exílio, permaneceram emocionalmente ligados a
Portugal. Quando o padre Antonio Vieira pediu ao rei D. João IV para
readmitir em Portugal os judeus exilados, referiu-se ao amor que os
judeus sentiam pela pátria[8] .

E o padre Pantalião de Aveiro[9] conta que quando foi em visita a
Safed, na Palestina, ficou impressionado como os portugueses que lá
encontrou, principalmente com as mulheres, que choravam de saudades
de Portugal.

Apesar do grande número de conversões e da profunda assimilação, a
Alemanha provou aos judeus e fê-los compreender a impossibilidade de
tornarem-se alemães. Três séculos depois da conversão forçada dos
judeus ao cristianismo, Heine escrevia: "o certificado de batismo é o
cartão de entrada à cultura européia". Mas será que foi mesmo? Depois
do batismo, os judeus alemães, como séculos antes os judeus
portugueses, podiam ser apenas espectadores[10] . A ambigüidade do
mundo de Heine se repetiu, como no mundo moderno, com tantos judeus
de Viena no final do século XIX, Kokoska, Gustav Mahler, Stefan Zweig
e outros, mesmo depois do batismo continuaram "outsiders" nas
profundezas da alma.

Em uma novela A cidade de Lucca, Heinrich Heine transmite a imagem
que pode ser bem a imagem do Santo Ofício: uma grande empresa que
governa com absoluto poder pelos seus diretores (os Inquisidores),
vendendo seus bens de salvação sem admitir nenhuma concorrência[11] .

Mas há uma realidade que temos que conhecer para entender esse
fenômeno de dimensão universal, o antimarranismo, que perdurou em
Portugal durante a época moderna: o perigo que a intelligentsia
marrana representava para a continuidade do antigo regime. Durante
três séculos, o "judaísmo" foi o horror não só da Igreja, mas do
sistema político português.

Os judeus têm sido através dos tempos estereotipados como subversivos
e os marranos eram vistos como um elemento perigoso da sociedade.
Traziam novos conceitos de justiça e liberdade para uma sociedade
impregnada de fanatismo, de crendices e superstições. Foram
subversivos Spinoza, Garcia da Orta, Damião de Góes. Foi subversivo
Bento Teixeira, Antonio José da Silva e também outros. A maior glória
do regime totalitário português foram seus subversivos.

Para compreendermos a verdadeira história dos marranos é preciso que
voltemos às fontes, não somente aos processos, pois como sabemos,
muitos réus confessavam serem judaizantes sob tortura e medo, mas
encontrar as idéias expressas pelos contemporâneos, tanto cristãos-
velhos como cristãos-novos que viviam no mesmo território. É
importante que conheçamos as mensagens secretas que os prisioneiros
confinados nos cárceres mandavam para seus parentes no Brasil,
precisamos conhecer as petições enviadas ao Rei, frases sussurradas
nos silenciosos corredores dos conventos, palavras trocadas nas
boticas, que eram o ponto de encontro dos poetas, escritores
dissidentes e outsiders. E, ainda mais, encontrar o que os judeus
marranos pensavam de si mesmos e de seus carrascos.

Uma rica fonte para entender o fenômeno marrano em toda sua
complexidade são os escritos do padre Antonio Vieira, que durante
toda sua vida lutou pela justiça e liberdade dos judeus. Vieira era
um homem de dentro da Igreja, portanto um testemunho insuspeito. Numa
carta que escreveu ao Papa Inocêncio XI, a cujo conteúdo principal já
me referi em outro trabalho, acusa a hipocrisia e os crimes
praticados pela Igreja na sua pátria[12] . Como Vieira passou grande
parte de sua juventude na Bahia, conhecia intimamente os cristãos-
novos da colônia e quando voltou a Portugal, servindo como diplomata
do rei D.João IV, e durante as viagens que fez a Holanda e a França,
tornou-se amigo dos judeus portugueses que tinham se expatriado. O
padre Antonio Vieira, no século XVII, alertou o Papa contra o racismo
[13] , com o mesmo espírito com que três séculos depois o Papa Pio XI
mandou preparar a Encíclica contra o racismo, que se tivesse sido
aplicada, poderia ter salvo milhares de vidas.

Mas nem Vieira no século XVII nem o Papa Pio XI no século XX
conseguiram salvar os judeus. Vieira foi derrotado em todos os seus
planos, e Pio XI morreu antes de concretizar sua proposta. A
Encíclica foi examinada pelos seus sucessores, e os chefes
espirituais assim como as grandes nações silenciaram quando em
Portugal se queimavam os judeus ou quando os sufocavam na Alemanha
nas câmaras de gás. As igrejas cristãs que protestaram quando Hitler
ordenou a eutanásia de todos os deficientes físicos e mentais não se
manifestaram quando Hitler mandou matar todos os judeus. Hoje podemos
dizer, e com remorsos, que os judeus foram abandonados sempre, por
toda a humanidade.

Para escrever uma história total do Brasil, como proposta pelos
historiadores modernos, é necessário que tomemos como referência o
grupo marrano e tentar encontrar o legado que nos deixaram em sua
longa trajetória de três séculos. Como o judaísmo não está ligado
exclusivamente ao domínio do sagrado, mas transborda além de seus
limites religiosos, seus componentes são muitas vezes puramente
profanos. Marranos deixaram no Brasil uma literatura, uma arte, uma
política, uma economia que não foram ainda devidamente estudas.

Numa segunda parte desta minha palestra, vou me referir a dois
grandes escritores brasileiros, Machado de Assis, que nos deixou uma
bela imagem do drama marrano, assim como sobre o destino dos judeus,
e Castro Alves, para quem a sorte inglória dos judeus não lhes
permite nem viver.

Machado conhecia profundamente o funcionamento da Inquisição e
ninguém compreendeu melhor que ele o marranismo. Em seu poema A
cristã-nova mostra-nos, de um lado, um velho judeu que, olhando a
Baía de Guanabara, sonha com Jerusalém; e de outro, sua jovem filha,
fiel devota do cristianismo. Com a prisão do velho pai pelos
familiares do Santo Ofício, a cristã-nova deixa a Igreja e retorna ao
seio dos antepassados[14] .

Machado de Assis retomou o tema judaico na novela Ahasverus, o Judeu
Errante (quem foi mais errante que o marrano?), tema que também
inspirou o poeta Castro Alves. Ambos deram ao Judeu Errante uma
conotação diferente da Igreja, que durante séculos utilizou-se dessa
lenda como arma antijudaica. Machado apresenta nessa novela, de
maneira mais profunda, a luta entre o impulso da vida e a morte.

O Judeu Errante é o elo entre o mundo terreno e a eternidade.
Ahasverus é o símbolo do judeu, está cansado de sofrer e de
perambular pelo mundo, almadiçoa a vida e quer morrer. Adeus céus,
adeus nuvens, adeus rosa, adeus águas ! A novela conta o diálogo
entre um judeu e Prometeu. O personagem grego o consola, diz que o
mal vai acabar, não haverá mais injustiças na Terra, não clamarão
mais os oprimidos. Uma nova era de paz e justiça espera o judeu, e
Ahasverus, ouvindo Prometeu, começa de novo a sonhar com a vida e a
beleza. Duas águias sobrevoam e uma delas suspira:"Ai, ai, ai deste
último homem, está morrendo e ainda sonha com a vida!"

E a outra águia responde:"Nem ela a odiava tanto Senão porque o amava
muito."

No poema A cristã-nova, Machado oferece uma opção, que é o
sacrifício, a morte, juntamente com a fidelidade a Israel. Na novela
Ahasverus é o amor à vida que emerge da esperança de um Retorno. No
poema, transmite o irremediável, a fatalidade. Na novela, o sonho
messiânico.

O poema A cristã-nova está sempre relacionado ao sentimento de perda,
como algo que acabou e não tem retorno. Não há no poema nenhuma
mensagem de esperança. Em nenhum momento Machado sugere o fim do
sofrimento do povo judeu ou uma possível reconstrução da pátria, a
Palestina. O poema reflete sempre a imagem da ruína, da fatalidade. O
sonho com a Terra Prometida se entrechoca com a realidade implacável.
Tudo perdeu-se para os judeus no naufrágio do passado. Uma só coisa
salvou-se - Deus. E o velho marrano, olhando a Baía de Guanabara,
suspira o salmo:

Junto aos rios da Babilônia
Nos sentamos um dia
Com saudades de Zion.
Que me seque o braço direito
Se eu me esquecer de ti Jerusalém

O poema termina com o vencedor, que não é o velho marrano, mas o
Carrasco.Venceu o Mal. E para que o amor, a lealdade, a justiça
voltem, os judeus terão de esperar até a eternidade.

E então talvez, na eternidade, o bem vença, e então Deus se compadeça
e leve em conta o muito amor e o padecer extremo da vida dos judeus.

Castro Alves também retomou o tema do Judeu Errante e em sua poesia
compara a solidão do judeu com a solidão do gênio que

Pede a mão de amigo, dão-lhe palmas
Pede um beijo de amor - e as outra almas
Fogem pasmas de si...
E o mísero, de glória em glória corre...
Mas quando a Terra diz: ele não morre
Responde o desgraçado: eu não vivi!

E como este Seminário é dedicado a pensar novos caminhos para o
século XXI, quero nesta terceira parte dizer algumas palavras sobre
as novas perspectivas que se abrem para os estudos sobre a história
dos judeus no Brasil.

A historiografia recente valorizou enormemente os trabalhos sobre
histórias de vida e coloca o historiador como um elemento ativo e
sempre presente, mesmo quando dialoga com o passado. Na
reconstituição da História do passado colonial o "acontecimento",
o "fato", readquiriu um lugar privilegiado, pois nos permite escrever
uma história existencial sem paralelo. A documentação inquisitorial
nos fornece uma massa de informações perdidas e nos faz conhecer
vivências desconhecidas e não abordadas de outras fontes.

Um belíssimo projeto denominado Resgate trouxe para o Brasil milhares
de documentos referentes à nossa história colonial, mas privilegiou a
história político -econômica. As ansiedades, angústias, medos e
incertezas que pulsavam na alma dos portugueses que emigraram para o
Novo Mundo não fazem parte desse projeto. Os milhares de documentos
referentes ao Brasil pertencentes ao Arquivo da Inquisição não foram
incluídos. É pois com a intenção de preencher essa lacuna que
elaborei um projeto para a criação de um Laboratório de Estudos sobre
a Inquisição, a Intolerância e o Racismo, ligado ao Departamento de
História e ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São
Paulo. Esse Laboratório interdisciplinar será dedicado inteiramente à
pesquisa e contará com um acervo documental com manuscritos inéditos
que hoje estão espalhados em diversos arquivos europeus,
principalmente em Portugal e na Espanha, e ainda uma biblioteca
especializada sobre a temática da Inquisição, cristãos-novos e
heresias em geral. Uma equipe de pesquisadores trabalhará na leitura
e transcrição desses documentos para posterior publicação.

Até hoje são poucos os historiadores que trabalham com documentação
inquisitorial. Uma vez adquirido o "corpus documental", os estudiosos
terão as ferramentas necessárias e poderão contribuir para uma melhor
construção do presente. O historiador não pode prevenir o futuro.
Quem poderia ter previsto a queda do regime soviético? Mas o
conhecimento do passado contribui para a inteligência do mundo
presente.

Está em curso uma Nova História. É preciso que se abra para a
História da Sociedade Colonial novas fronteiras críticas que se
oponham à corrente conservadora, que minimizou o papel da Inquisição
e da perseguição aos luso-brasileiros.

Há um longo caminho para as gerações futuras percorrerem até
alcançarem uma história total da sociedade colonial. O mundo desde o
fim da II Grande Guerra está sendo remodelado radicalmente. É
necessário criar novas definições para a história do Brasil, ajudar a
formação de novos mapas mentais, adequados para um mundo em mudança,
e repensar o nosso passado na sua complexidade marrana. A história,
como disse Walter Benjamim, não é uma longa marcha da humanidade em
relação ao progresso, mas uma cadeia ininterrupta de violências e
opressões, uma montanha de ruínas que sobem até o céu. A solidão do
marrano, sua impossível assimilação, suas tentativas frustradas para
se integrar na sociedade, lembram uma famosa sentença da novela de
Kafka, citada por Hannah Arendt[15] quando, ao herói, símbolo do
judeu, é dito: "você não é o castelo, você não é a vila, você é
nada". Segundo Saul Friedlander, se considerarmos em um contexto
amplo a relação entre o judeu e a civilização ocidental, na qual ele
tentou integrar-se, mas pela qual foi rejeitado, o Castelo adquire
uma significação mais profunda: o herói do Castelo, o Judeu, é um
estrangeiro que acredita que lhe foi permitido entrar no sistema
social representado pelo castelo e pela vila. Foi até convidado para
entrar. Mas quando começa a se adaptar ao sistema, descobre que
ninguém realmente estava pronto para aceitá-lo. Então ele se torna um
revolucionário, tratando de subverter os tradicionais canais de
autoridade, expressando seu protesto contra a injustiça. Mas, como
diz Friedlander, os esforços revolucionários dos judeus são ambíguos,
mas também o eram os dos marranos, que tinham um desejo de mudança
radical, ao mesmo tempo que tinham um forte desejo de "pertencer" a
essa sociedade. O judeu, como o marrano, quanto mais quer pertencer,
mais isolado se torna, mais baixo ele se agarra na sua solidão[16] .

Friedlander lembra que Kafka nunca terminou sua novela, mas mencionou
a alguns amigos o fim que previa. Segundo seu biógrafo Max Brod,
Kafka planejou mostrar o herói cada vez mais baixo, até que de
repente chega uma mensagem do castelo: ele foi aceito! Mas a mensagem
veio muito tarde, o herói já está morto[17] . Após a II Grande
Guerra, quando foi descoberta a magnitude dos massacres nazistas, a
tradição anti-semita arrefeceu, e Friedlander propõe uma questão
terrível, que pensa, talvez, nunca seja respondida e que estendo até
a experiência marrana: o castelo mandou a mensagem porque o mal, a
injustiça foram reconhecidos? Ou o mensageiro foi enviado porque o
herói já estava morto?

E para terminar: os nazistas mataram dois dos maiores historiadores
do século XX: Marc Bloch e Simon Dubnov - porque eram judeus. E eu
quero vos transmitir a última mensagem de Dubnov, ao ser
fuzilado: "Companheiros! Companheiros! Escrevam! Escrevam e contem!"

Notas

[1] BEINART, Haim (Ed.) Moresht Sepharad: The Sephardi Legacy.
Jerusalem: The Magnes Press; The Hebrew University, 1992. 2v. [volta]

[2] Sobre o marranismo brasileiro, ver NOVINSKY,Anita. Marranos and
Marranism - a New Approach. Journal of The World Union of Jewish
Studies. Jerusalém, v.40, , p.5-20, 2000. [volta]

[3] Sobre os cristãos-novos do Rio de Janeiro, ver SILVA, Lina
Gorenstein Ferreira da. Heréticos e Impuros - Inquisição e cristãos-
novos, Rio de Janeiro, Século XVIII. Rio de Janeiro:
Secretaria.Municipal de Cultura, 1995. [volta]

[4] MORIN, Edgar Os meus demônios. Lisboa: Publicações Europa-
América, 1995. [volta]

[5] MÉCHOULAN, H (Ed.) Les Juifs d´Espagne: histoire d´une diaspora.
1492-1992. Paris: Liana Levi, 1992. [volta]

[6] MORIN, op.cit. [volta]

[7] Sobre Heinrich Heine ver EIVEIT, Philipp Henire: The Marrano
Pose. Monatschefte, v. 66, n. 2, 1974 e o livro recente de LASSIN,
Yigal. Heine: A Dual Life. Jerusalém-Tel-Aviv: Schoken, 2000. (em
hebraico) [volta]

[8] VIEIRA, Antonio (Pe.). Obras Escolhidas, v. IV, Obras várias III
[volta]

[9] DÁVEIRO, Pantalião (Frei). Itinerário da Terra Sancta e suas
particularidades. Lisboa, 1593 apud MARCEL. Bataillon, testigos
cristianos del protosionismo hispano-portugues. Nueva Revista de
Filologia Hespanica, México, v. 24, n. 1, p. 137,[ s.d.]. [volta]

[10] ROBERTSON, Ritchie. Heine. New York, 1988. p.84 [volta]

[11] Ibid, p. 88 [volta]

[12] Manuscrito. Biblioteca da Ajuda, Lisboa. Códice 49/1v/23. p.6-8
verso [volta]

[13] Ver NOVINSKY, Anita .Sebastianismo, Vieira e o messianismo
judaico. In: Sobre as Naus da Iniciação. Estudos Portugueses de
Literatura e História. Araraquara, S.P., 1998. p. 65-79 [volta]

[14] NOVINSKY, Anita.O olhar judaico em Machado de Assis. Rio de
Janeiro: Expressão e Cultura, 1991. [volta]

[15] ARENDT, Hannah. The Jew as Pariah: a Hidden Tradition. Jewish
Social Studies, v. 6, p. 115, 1944 apud FRIEDLANDER, Saul. Some
Aspects of the Historical Signifiance of the Holocaust. Jerusalem:
The Hebrew University, 1977. p. 36 [volta]

[16] FRIEDLANDER, op. cit. [volta]

[17] Ibid [volta]


Fonte: NOVINSKY, Anita. A nova historiografia sobre os judeus no
Brasil: perspectivas para o século XXI. In: SEMINÁRIO DE
TROPICOLOGIA: o Brasil e o século XXI: desafios e perspectivas, 2001,
Recife. Anais... [prelo]