Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


18-07-2014

Pré-defunto chato e reaccionário João Ubaldo Ribeiro 12.10.05


A autobiografia de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014)

O escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro, de 73 anos, Prémio Camões 2008, morreu na madrugada de hoje em casa, no Rio de Janeiro, noticia online o jornal brasileiro O Globo.
Fonte da assessoria do escritor indicou ao jornal que o escritor foi vítima de embolia pulmonar, uma "morte súbita, que chocou a família", que o acompanhava.
Nascido em 1941, na Ilha de Itaparica, Baía, fez estudos literários e de direito, que nunca chegou a exercer, entrando no jornalismo com apenas 16 anos, no Jornal da Baía.
Autobiografia João Ubaldo Ribeiro - Pré-defunto chato e reaccionário
Já é lugar-comum dizer-se que o indivíduo jovem é imortal. Sim, quando jovens somos imortais. Posso até postular que a juventude acaba no momento em que constatamos que somos mortais. Não acontece a todos à mesma altura da vida e há talvez exceções, embora escassas. Vão sucedendo mortes na família e em famílias próximas, desaparecem contemporâneos notáveis com quem nunca tivemos convivência pessoal, mas que, de certa forma, marcaram sua época de uma maneira que os livros de História não costumam re.etir, morrem amigos e, um belo dia, olhamos em torno e compreendemos que estamos condenados ao grande momento de solidão que é a morte.
Os que mais temo são velhotes insuportáveis, desses que batem recordes olímpicos aos 87 anos, fazem .lhos em raparigas (no Brasil, eu escreveria "moças", mas, como este é um jornal português, escrevo "raparigas" -falta de carácter, claro, mas pelo menos tenho a hombridade de denunciar minha própria vilania) de 22 anos e quebram pilhas de tijolos com cutiladas de mão. É o estilo "a idade está na cabeça" e "o importante é a qualidade de vida", postura execrável em todas as suas manifestações, desde as dentaduras esplendorosas que ostentam às entrevistas gabolas que dão na tevê, sob os olhares reverentes dos circunstantes, que invariavelmente a.rmam tratar-se de algo "muito bonito", acto tão imprescindível quanto quali.car qualquer jantar que não consista num prego com água sem borbulhas de "opíparo" (almoço é "lauto").
Não posso, embora me assalte grande vontade, examinar os outros tipos da rica galeria daqueles que no Brasil são chamados de coroas, ou seja, velhotes, sob algum ponto de vista. Encomendaram-me uma autobiogra.a e devo ater-me à encomenda. No ensaio que escreveria sobre os que já se sabem mortais, os autobiogra.stas teriam certamente lugar especial, pois, de modo geral, eram chatos em vida e, não satisfeitos em atanazar o semelhante durante toda a existência, persistem depois de mortos. Claro, há excepções, mas não vou citar autobiogra.a nenhuma, nem das muitas que detesto nem das poucas de que gosto.
Os romancistas que se autobiografam são duplamente imputáveis, porque, por vias tortas que ninguém entende, escrever romances é falar de si mesmo. Mais comumemente dá-se por vias indirectas, de modo que, atrapalhado pelos enredos, descrições e diálogos que seu disfarce o obriga a usar, sobra pouco espaço para o romancista falar um pouco mais de si mesmo, de maneira que ele escreve novos romances e todos, se bem esgravatados, se revelarão a mesma história básica. Mas isto não é su.ciente para os que fazem autobiogra.as, eles querem falar de si mesmos encarapitados em seus jazigos, nem a morte os silencia. Diversos, pelo menos aqui no Brasil, usam médiuns e continuam a falar, embora não se possa dizer que a qualidade do que dizem melhora com a passagem para o Além. Algo de muito traumático terão sido os trespasses, porque invariavelmente dão para escrever mal.
Mas quem sou eu para discutir tão altas questões, passemos à minha autobiogra.a.
Nasci na ilha de Itaparica, baía de Todos os Santos, Estado da Bahia, Brasil, em 23 de Janeiro de 1941. Meu pai e minha mãe se conheceram na Faculdade de Direito da Bahia, onde também acabei por formar-me. Embora não seja advogado, por ter terror a cartórios, escrivães, procuradores, juízes e assemelhados, sou bacharel em Direito. Nasci de dez meses e fui extraído a fórceps. Meu pai era filho do português João Ribeiro e da brasileira Amália.
Minha mãe era filha do coronel (não do Exército ou da Polícia, mas coronel do interior mesmo, no uso dos brasileiros rurais para designar o mandachuva) Ubaldo Osório Pimentel e de Larentina (Iaiá Pequena, ou Dona Pequena).
Meu pai começou a carreira como juiz no interior de Sergipe. Era cultíssimo e letradíssimo, muito eloquente e de excelente memória. Tinha .xação doentia em mim e nos demos mal praticamente a vida toda, embora nunca tenhamos sido inimigos. Apenas ele me aporrinhava ao extremo e eu certamente a ele. Quando ele morreu, não senti nada. Era um homem sábio, pois sustentou até a morte que eu não sabia escrever e era um fracassado que só acertava a fazer .lhos e, assim mesmo, também mal. Não tenho saudade dele, apesar de ser grato pela formação que me deu, me obrigando a estudar.
De minha mãe não falo nada. Ainda é viva e não poderá ler e, com certeza entender o que escrevo aqui. Teve uma sucessão de pequenos acidentes vasculares no cérebro e hoje vive con.nada à cama de hospital que lhe instalaram em casa. Quando a visito, geralmente parece reconhecer-me, mas temo que me confunda com meu pai ou meu irmão mais moço. Meu pai já morreu e a confusão com ele não agrada, e meu irmão nunca vai vê-la, de maneira que me inquieta um pouco essa possibilidade. Ela balbucia algumas palavras de vez em quando e ninguém sabe o que lhe vai na mente.
Comecei a escrever desde cedo. Morávamos em casarões imensos, na década de 40, e eles eram cheios de livros. Desde pequeno, me interessei por esses livros e uma de minhas primeiras lembranças era pegá-los, não para lê-los, porque não sabia, mas para ver-lhe as estampas e, principalmente, para cheirá-los. Conservo esse hábito até hoje e cheguei a ler livros não tanto por seu conteúdo, mas pelo seu cheiro. Aprecio muito dicionários velhos, que me parecem terem um odor exclusivo. Sou capaz de .car cheirando livros durante horas, com breves intervalos para uma leiturazinha de alguns minutos.
Leio dicionários também e faço jogos comigo mesmo. Se o dicionário é de uma língua estrangeira com que não tenha muita familiaridade, procuro uma palavra e se, no verbete correspondente, achar outra palavra que também desconheça, vou a essa e assim sucessivamente.
Já varei madrugadas fazendo isso, porque há inúmeras variantes desse jogo, que tenho preguiça de contar agora.
Aprendi a ler em um só dia e passei a ler famelicamente desde então. Mas, faz cerca de 20 anos, dei para ler os mesmos livros sempre, às vezes as mesmas páginas, meses a .o. Não tenho mais paciência com nada novo e acho que preciso aprender sempre, e ainda muito, com os meus clássicos, notadamente Homero (Ilíada, sou homem de Ilíada), Rabelais, Lewis Carroll, Shakespeare, Jorge de Lima, Damon Runyon (isso mesmo, ignorância de quem nunca ouviu falar), Mark Twain, Poe, Monteiro Lobato (obra infantil), Padre Manuel Bernardes, Gregório de Matos e uns pouco mais. Agora não estou lendo nada, porque estou escrevendo um livro e, no máximo, por necessidade, leio jornais, para encontrar assunto para minhas crónicas. Se ler durante a escrita, tendo a mimetizar o texto que estou lendo. Além do mais, um bom soneto às vezes me abastece um mês inteiro ou mais. Aconteceu poucas vezes, mas aconteceu.
Eu já escrevia desde que aprendi a ler, mas, no que imagino ter acontecido a todos os colegas, não sabia que ia virar escritor. Meu pai, sem me consultar, me pôs na redação de um jornal e fui repórter, redactor e, bem depois, director de redação. Por causa do jornal e da Faculdade de Direito, me envolvi com literatos e intelectuais. Sempre fui o retardado da turma, o mais abestalhado, o último a publicar e o que não arranjava mulher. Tentavam arranjá-las para mim, mas elas não queriam. Depois, a situação mudou e tive um certo sucesso, mas que nunca apagou os traumas anteriores.
Vivi em Sergipe, na Bahia, em Iowa City, em Los Angeles, em Lisboa e em Berlim. Tenho horror a ser estrangeiro, mesmo em Portugal, país do meu coração, onde tenho dois ou três amigos que considero parentes e sempre sentirei falta do Zé Cardoso Pires e do Fernando Assis Pacheco.
Os portugueses, em geral, não gostam mais dos brasileiros, me tratam mal em ruas e lojas. Então pre.ro .car na minha sala, escrevendo.
Virei escritor porque não sei fazer outra coisa. Deverei morrer, se tudo correr bem, dentro de no máximo uns 20 anos. Antes disso, serei, como talvez já tenha .cado, um pré-defunto chato e reacionário, de difícil convivência e rarefeita civilidade.


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