Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


25-01-2011

Noite de festa na senzala - M Eduarda Fagundes


!mso]> gte mso 9]> Normal 0 21 false false false MicrosoftInternetExplorer4 gte mso 9]> gte mso 10]>

Noite de festa na senzala              
M Eduarda Fagundes

 Rugendas: Batuque

 Fonte : Wikipédia

 

Julio Ribeiro (1845- 1890) nasceu em Sabará, cidade colonial mineira, e morreu em Santos de tuberculose. Era filho de uma professora e de um americano boêmio que chegou a Minas como artista de circo. Pouco depois do casamento abandonou mãe e filho, e sumiu para sempre. Do pai, Julio herdou a agitação e a tendência a situações polêmicas que se refletiram no seu trabalho. Teve excelente formação acadêmica, dominando inclusive várias línguas. Gramático, romancista, intelectual sarcástico e irreverente, naturalista, recebeu criticas contundentes por abordar na sua obra mais conhecida- A Carne- a sexualidade humana, coisa naquela época inconcebível.

·        Para ilustrar um aspecto da cultura negra no Brasil, um trecho que mostra como era uma “noite de festa nas senzalas”:

 

Noite de festa nas senzalas, por Júlio Ribeiro, in A Carne

Já tinha anoitecido.

Não havia luar, mas a noite estava clara. Na transparência escura do céu tropical as estrelas empastavam-se em um amontoamento inverosímil, como punhados de farinha luminosa em tela muito negra.

No terreiro, varado, em frente às senzalas, uma fogueira crepitava alegre, espancando a escuridão com seu brasido candente, com suas línguas de chamas multiformes, irrequietas.

Os negros tinham acabado uma carpa nesse dia, e o coronel dera-lhes permissão para folgar, mandando ao mesmo tempo que o administrador lhes fizesse uma larga distribuição de aguardente.

Ao som de instrumentos grosseiros dançavam: eram esses instrumentos dois atabaques e vários adufes.

Acocorados, segurando os atabaques entre as pemas, encarapitados, debruçados neles, dois africanos velhos, mas ainda robustos, faziam-nos ressoar, batendo-lhes nos couros, retesados, às mãos ambas, com um ritmo, sacudido, nervoso, feroz, infrene.

Negros e negras formavam um vasto círculo agitavam-se, permeavam, compassadamente, rufavam adufes aqui e ali. Um figurante, no meio, saltava, volteava, baixava-se, erguia-se, retorcia os braços, contorcia o pescoço, rebolia os quadris, sapateava em um frenesi indescritível, com uma tal prodigalidade de movimentos, com um tal desperdício de ação nervosa e muscular, que teria estafado um homem branco em menos de cinco minutos.

E cantava:

 Serena pomba, serena;

Não cansa de serená!

O sereno desta pomba

Lumeia que nem meta!

Eh! Pomba! eh!

 E a turba repetia em coro:

 Eh! Pomba! eh!

 A voz do cantor, fresca modulada de um timbre sombrio, coberto, tinha uma doçura infinita, um encanto inexprimível.

Fechando-se os olhos, não se podia crer que sons tão puros saísse a garganta de um preto, sujo, desconforme, hediondo, repugnante.

A resposta coral, melopéia inarmônica, mas cadenciada em quebros de uma tristeza suavíssima, repercutia pelas matas no silêncio da noite, com uma grandiosidade melancólica e estranha.

A letra nada dizia; a toada, o canto era tudo.

E os atabaques retumbavam, rufavam os adufes, desesperadamente.

O dançarino, sempre a cantar, sempre naquela agitação, naquela coreomania estupenda, percorria a roda sem sustar-se para retomar alento, sem dar mostras de cansado. Em sua testa baça não brilhava uma baga de suor.

De repente, vendo um tição inflamado na mão de um companheiro, asiu-o, entrou a descrever com ele no ar figuras caprichosas, círculos, elipses, oitos de algarismo. Bateu-o no chão, espalhou na roda milhares de faúlas... O entusiasmo ascendeu ao delírio.

O dançarino deitou fora o tição, arrojando-o longe com impulso vigorosíssimo. Depois afrouxou, moderou um pouco os movimentos. Entreparou ante um dos da roda, bamboando-se, fazendo-lhe gaifonas, como que reptando-o para que saísse ao terreiro.

O desafiado aceitou a provocação, saiu-lhe ao encontro, dançando, saracoteando-se, também.

Eh! Pomba! eh! - gemia o coro.

Os figurantes, que eram então os dois, começaram de girar em torno do outro, atacando-se perseguindo-se, fugindo, como duas borboletas amorosas. Recuaram, depois avançaram de frente, lento, medindo-se. Deixaram pender os braços, afastaram as cabeças, protraíram os ventres, curvando as pemas, fizeram estalar uma embigada artística, sonora, retumbante, que se ouviu longe.

Eh! pomba! eh! - continuava a gemer o coro.

O primeiro figurante embarafustou-se por entre os companheiros, rompeu a roda, sumiu-se, deixando só o sucessor que continuou na faina com a mesma galhardia.

Os que não dançavam, que não tomavam parte no samba, grupavam-se aos magotes, acotovelando-se; olhavam em silêncio, enlevados, absortos.

Do solo batido pelo tripudiar de tanta gente erguia-se uma nuvem de pó, avermelhada pelo clarão da fogueira.

A garrafa de aguardente andava de mão em mão: não havia copos; bebiam pelo gargalo.

 

 

Nota:

Segundo a literatura popular, Pomba gira é uma entidade feminina de um culto afro-brasileiro que quando incorpora uma pessoa( médium) pode perverte-la sexualmente, dependendo das suas tendências.  

 

Maria Eduarda Fagundes

Uberaba, 22 de janeiro de 2011