Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


23-10-2004

A Lusofonia e o Mirandês


Em Bragança, entre 21 e 23 de Outubro
 CHRYS CHRISTELLO

Após o sucesso da anterior edição, a Câmara Municipal de Bragança, decidiu manter a sua aposta cultural na realização deste importante evento anual. Uma das razões preponderantes para organizar um Colóquio Anual (Internacional) da Lusofonia assenta no facto de a maior parte destes acontecimentos estar centralizada nas grandes urbes sem permitir que as regiões mais desertificadas e afastadas dos centros de poder, tenham ao seu alcance debates sobre a Língua Portuguesa, suas diversidades e propostas inovadoras de ensino.
Este ano pretendeu-se chamar à ribalta a “outra” língua oficial, o MIRANDÊS cuja existência se deve ao esforço de uma minoria de pessoas dedicadas e empenhadas em evitar a tragédia mundial que é a morte das línguas. A maioria das pessoas, mesmo as residentes no concelho de Miranda de Douro, desconhece que se pode redigir um requerimento em Lhéngua Mirandesa e entregá-lo em qualquer repartição pública do Distrito, que pode fazer toda a sua vida normal usando o Mirandês, essa língua de contacto que coabita com a portuguesa há séculos. Tem-se falado pouco mas é importante que se fale para o desenvolvimento das gentes de Miranda, para aprenderem o valor e a importância da própria língua como factor de desenvolvimento sociocultural. Embora seja um processo lento, pode ser um reforço não só turístico, como um elo de ligação importante entre a língua e a sociedade. É preciso continuar a investir na educação para que a língua tenha cada vez mais falantes.

 

A diversidade cultural, onde se insere a diversidade linguística, é um elemento fundamental da riqueza patrimonial de um povo. Interrogar essa realidade entre nós, é chamar a atenção para a necessidade de valorizar a diferença e a tolerância, aprofundando a democracia cívica. Portugal renegou durante muito tempo essa realidade. Hoje, lentamente, acorda para ela, mas o fato parece ainda não lhe assentar à medida, desconhecendo que assim se empobrece e dá uma imagem menos rica e menos democrática de si mesmo. 
O Nordeste transmontano preservou, fruto do isolamento, línguas milenares, como o mirandês e outras falas asturo-leonesas. O feito que estes povos conseguiram é hoje, com todo o mérito, património da humanidade. A essas línguas vem agarrada uma cultura riquíssima que se expressa na literatura popular de tradição oral, na música, na dança, e num conjunto de saberes e de saber fazer que se decantaram ao longo de milhares de anos. Reflectir sobre esta temática é ajudar a criar condições para que as realidades chamadas “minoritárias” (em sentido quantitativo) não continuem a ser, de facto, menorizadas. Mas é também reflectir sobre as bases de um novo modelo de desenvolvimento que não tenha como medida exclusiva os quilómetros de asfalto ou as toneladas de betão, já que como todos sabemos este é o único distrito do país sem um só quilómetro de auto-estradas.

Debatemos a problemática da Língua Portuguesa no Mundo, analisámos as suas modalidades práticas com as necessárias correspondências em articulação com outras comunidades culturais, históricas e linguísticas lusófonas como agentes fundamentais de mudança. Pretendia-se Contribuir para a presença, difusão e consolidação da Língua Portuguesa, enriquecida pelas línguas minoritárias; Explorar e analisar as questões da tradução como forma privilegiada de divulgação, expansão e revitalização da Língua Portuguesa no Mundo; Analisar o Ensino de Português como língua materna e língua estrangeira (segunda)
Pretendia-se igualmente criar um espaço de reflexão através do intercâmbio entre os vários intervenientes de forma a surgirem elementos práticos que possam depois funcionar no âmbito da acção dos oradores e participantes presenciais. Criar um espaço de debate de todas as variantes de Português falado no mundo desde Timor à Galiza. Em vez de organizarmos um colóquio como tantos outros, tentamos que este fosse mais prático não se apresentando conclusões, mas permitindo que cada pessoa experimente nos seus locais de trabalho as experiências com êxito que foram apresentadas ao longo do evento. Igualmente conseguimos este ano, com a ajuda preciosa da Direcção de Cultura da CMB, promover uma mostra de livros, uma mostra de artesãos e visitas guiadas ao parque Nacional de Montesinho e às aldeias comunitárias de Guadramil e Rio de Onor, para além duma exposição de pintura sobre a máscara, de Luiz Canotilho.
Este Colóquio coloca Bragança na cimeira das cidades dedicadas à preservação e discussão da língua com a garantia dada pelo Presidente da Câmara de Bragança, Eng.º Jorge Nunes, de que haveria novo Colóquio em 2005.
Podemos dizer que pela presença constante de mais de cinco dezenas de pessoas ao longo dos três dias do Colóquio este foi um sucesso. A sua participação activa no desenrolar das apresentações e dos debates tornou bem sagaz a noção de que a língua portuguesa está viva e cheia de ideais.

No que toca ao Mirandês, as principais intervenções foram protagonizadas por Amadeu Ferreira, autor de diversas obras, um dicionário e traduções, nomeadamente de Os Lusíadas. Domingos Raposo e Duarte Martins, professores de Mirandês foram outros intervenientes em destaque. A música tradicional da Terra de Miranda e os cantares em Mirandês também não foram esquecidos, dado que o colóquio contou com uma comunicação de Mário Correia, director do Centro de Música Tradicional Sons da Terra e organizador do Festival Intercéltico de Sendim.

Da Galiza veio uma forte intervenção de ÂNGELO CRISTÓVÃO da, Associação de Amizade Galiza Portugal sobre o contributo de ANTÓNIO GIL à SOCIOLINGUÍSTICA GALEGA. Nucleado no conceito de língua nacional, assente na ideia fergusoniana de diglossia como sinal de normalização linguística, concebendo a unidade gramatical das falas galegas e portuguesas e aplicando a concepção coseriuana de língua histórica , tem-se desenvolvido à margem dos âmbitos oficiais e académicos representando, na altura, a opção certa e possível para a correcção do desequilíbrio a favor do castelhano em que se acha submersa a comunidade lusófona galega.

ANTÓNIO BÁRBOLO ALVES debateu o tema “A língua mirandesa: discórdias, verdades e utopias” e falou da extinção das línguas e na sua correlação com o mirandês. Falou do desaparecimento das línguas. Nós somos aquele país que organizou um Campeonato da Europa de Futebol e cuja frase de candidatura foi We love Footbal? O mesmo em cujas fronteiras se pode ler Welcome to the Stadium of Europe? É este o cenário em que se encontra também o mirandês. Língua ancestral da qual. o riodonorês e o guadramilês sobrevivem apenas na literatura da especialidade. Uma língua que não tem, aos olhos dos seus falantes, nem prestígio, nem valor no mercado de trabalho, nem perspectivas de futuro para os seus filhos é abandonada. Para além de ser uma forma de comunicação, do seu valor filológico, etnográfico e antropológico, é também um capital simbólico que pode funcionar como elemento aglutinador daquela comunidade, representando por isso um capital económico que é necessário saber multiplicar


AMADEU FERREIRA, abordou o tema “A LÍNGUA MIRANDESA: da diversidade à unidade e a superação do complexo de patinho feio”. Frisou a necessidade de promover, alargar e dignificar o ensino da língua mirandesa; pelo desenvolvimento de uma literatura aos mais diversos níveis, quer em termos tradicionais quer em termos de intervenção regular na comunicação social; por fim, é necessário desenvolver a investigação fundamental em torno da língua mirandesa, que leve a um melhor conhecimento. Até há bem pouco tempo escrever em mirandês era uma curiosidade a poucos reservada. Felizmente, embora ainda em pequeno grau, a escrita do mirandês tem-se vindo a generalizar, num certo sentido podemos dizer banalizar, assim como a leitura de textos em mirandês. De certo modo vai-se tornando uma forma banal e normal de comunicar. Para esse efeito muito tem contribuído o desenvolvimento do ensino, mas em particular o aparecimento regular de textos em mirandês, nomeadamente em vários órgãos de comunicação social. A multiplicação deste tipo de textos, escritos por pessoas com formação muito diversificada, é um caminho a seguir quer na unificação do mirandês, quer no trazer de novos escritores e leitores para a língua mirandesa.


CARLOS FERREIRA ainda sobre a língua mirandesa abordou o tema “O Levante do Nordeste Transmontano - a Terra de Miranda como território de transição e fronteira.” Antes da romanização da Península foi o país onde os Zoelas, tribos Celtas do povo Astur, exerceram a sua influência e apascentaram os seus rebanhos em regime comunitário. No ano de 420 d.C. por aqui passava a fronteira entre Suevos e Alanos, e no ano 500 d.C. era fronteira entre o Reino Suevo e o Reino Visigodo. Em 950 d.C. estabeleceu-se por aqui a fronteira entre reveses Cristão e Árabes, a chamada “extremadura”. Em termos etnográficos estamos também perante uma região com características muito próprias e peculiares: a llhéngua mirandesa, os pauliteiros e o gaiteiro tocador de gaita-de-foles, a capa de honras, as tradições comunitárias e as festas solsticiais. Uma fronteira linguística, desde a “reconquista cristã”, o condado portucalense logo adoptou a norma linguística galaico-portuguesa e depois com a absorção do reino de Leão pelo reino de Castela, que logo adoptou a norma linguística castelhana, o falar asturo-leonês ficou encravado, na Terra de Miranda medieval. É comummente aceite que a língua se manteve viva até hoje apenas devido ao grande isolamento desta região. Como muito gosta de dizer o povo mirandês: “hai que saber tener-se na raiç”.

Os ESTUDOS DE TRADUÇÃO estiveram, de novo, presentes este ano por se pensar que neste campo está tudo ainda por fazer, a maior parte dos cursos está desajustada à realidade, os licenciados saem com falsas expectativas. É preciso profissionalizar de forma condigna esta área de trabalho tal como se fez na Austrália, Canadá, Irlanda, Suécia. Adaptar os cursos à vida real, fornecer competências aos formandos, colocá-los a trabalhar experimentalmente no mundo real como fizemos na Austrália desde há anos com o sistema de “mentorship” em que os jovens candidatos à profissão, passam um período entre semanas a meses, a trabalharem com um “mentor” que o/a acompanha enquanto aprende a lidar com as traduções. Durante esse período, auferem um pequeno vencimento e, sobretudo, adquire uma experiência que a maior parte dos cursos não pode proporcionar, sempre sob a supervisão dum tradutor atento.

Noutra intervenção MARIA D’AJUDA ALOMBA RIBEIRO referiu que Quando nos referimos ao bidirecionamento do ensino de português a hispanofalantes ou do espanhol para falantes de português seria de esperar que o alto índice de coincidências gramaticais favorecessem o aprendizado. Todavia, a proximidade entre as duas línguas e a relativa facilidade têm propiciado um dos maiores paradoxos da aprendizagem de línguas: essa aparente facilidade gera efeitos prejudiciais no processo de aprendizagem, com a presença constante da interferência no processo de produção e a possibilidade da fossilização dos erros ou equivocações.

Cecília Falcão, Cláudia Ferreira, Cláudia Martins, Fantina Pedrosa e Manuel Moreira Da Silva falaram dos Recursos para a tradução técnica e cientifica em língua portuguesa: um dicionário terminológico em geografia da população, e deram conta das dificuldades com que se têm deparado ao longo dos anos para completarem este trabalho.

Sobre o excitante problema das traduções de obras em português Mª ROSA ADANJO CORREIA falou da Lusofonia e a problemática da tradução das “ousadias verbais” de Luandino Vieira e das “escrevivências desinventosas” de Mia Couto Nos seus exemplos viam-se soluções diversas: glossário e notas nas traduções francesas, a sua ausência nas inglesas e, neste caso, como os conceitos foram explicitados no texto.

JOÃO CABRITA abordou o tema “A língua portuguesa e a lusofonia: A perenidade de uma mundivivência. Portugal espalhado pelo mundo na língua de Camões, de Saramago e de Lobo Antunes. Não um português canónico e intransformável. Um português de variantes, tal como no Algarve ou em Trás-os-Montes, das novelas brasileiras, ou da juventude, dos idosos, das escolas, ou bares e dos cafés. Um português alimentado pela comunicação, pela solidariedade, por eventos culturais, pela difusão, pela promoção da leitura.

LUCIANO PEREIRA abordou o tema “A cultura e o imaginário açoriano-catarinenense na obra literária de Franklin Cascaes”. O universo imaginário de Cascaes é sobretudo o universo bruxólico e mítico que tão bem soube representar. Para ele, o mito é a possibilidade de aceder às origens, uma realidade inteligível, uma pré-figuração do mistério primordial que antecede a revelação. As suas bruxas possuem todavia um encanto muito especial, são mulheres de carne e osso, feitas de desejos, de sonhos e de pesadelos, por vezes são brincalhonas, gostam de “judiação”, travessias e tropelias, pelo puro prazer de assistir ao sofrimento e ao desespero do comum dos mortais, são frequentemente sedutoras, exibem descaradamente a sua nudez, mulheres enfeitiçadas que se tornam feiticeiras, mulheres emancipadas que ousaram desafiar as leis do bom senso, “mulheres gostosas e cheirosas” que se oferecem em noites de luar: “As mais famosas bruxas da Ilha vivem lá no Ribeirão só comem pétalas de rosa pra ter cheiro no coração.” As bruxas de Frankelin Cascaes são a personificação dos mistérios da feminilidade e da tremenda carga erótica que emana da sua ilha adorada:

Chrys Chrystello referiu a sua experiência profissional citando: Na maior parte dos casos o que mais choca é depararmo-nos com pessoas não qualificadas a desempenharem um papel que só um profissional qualificado deve desempenhar, tal como acontece na maior parte das profissões. A esses amadores que impunemente se auto-denominam de tradutores e de intérpretes devia ser dada a oportunidade de, num certo contexto temporal, obterem as qualificações necessárias, sem as quais não poderiam exercer livremente a profissão. Além de insultuoso para os profissionais, este aspecto é responsável pela aleatoriedade de preços que existem nos vários mercados. Para se evitar este estado de coisas seria necessário que os países constituíssem uma Comissão Nacional de Acreditação e Reconhecimento de Qualificações, apoiada em legislação que limitasse o exercício da profissão aos profissionais, sem os biscateiros que pululam por aí.
O número de línguas existentes no mundo está a diminuir rapidamente, e não se trata de uma morte natural, nem de acidente, nem tampouco de causas naturais. O genocídio linguístico acontece quando as línguas são sistematicamente eliminadas da mesma forma que acontece o genocídio físico. Entre nós, alguns há que promovem e, simultaneamente, destroem a diversidade linguística. Alguns nem sequer admitem a existência das linguagens gestuais – tradicionalmente ignoradas – enquanto outros professam uma forma de darwinismo proclamando que línguas – como a inglesa – são suficientemente fortes e melhor preparadas para uma comunicação internacional.

Terminamos com um excerto do discurso de abertura:

Embora hoje seja um dia de festa para nós, a Lusofonia está de luto desde 27 de Maio por José Augusto Seabra, mentor intelectual e colega de várias iniciativas, que nestes três anos foi o patrono dos Colóquios de Lusofonia iniciados sob a égide da SLP – Sociedade da Língua Portuguesa – em 2002 no Porto, e em Bragança 2003. Era também um dos membros dos Comités Cientifico e Executivo do Colóquio deste ano da Câmara Municipal de Bragança. Com ele se criou a ALFE – Associação dos Lusofalantes na Europa – que serviu como elo motivador de algumas iniciativas culturais sempre ligadas à defesa e preservação da língua portuguesa. Sem ele vai ser difícil prosseguir, pois sempre teve o estímulo certo para os momentos de desânimo, e as palavras de incentivo rumo a uma utopia alicerçada nos seus múltiplos saberes. Foi no seu reinado como ministro da Educação que deu o aval ao Politécnico de Bragança, onde ainda há meses proferiu a Oração de Sapiência. José Augusto Seabra, um literato no mais amplo sentido, um homem das Letras, um republicano indefectível na senda dos verdadeiros republicanos da Iª República. Como Embaixador promoveu a Linga e a Cultura portuguesas de forma ousada e inovadora nos países onde exerceu, como director da Revista Internacional de Língua Portuguesa das Universidades da CPLP editava-a com o labor e a minúcia de quem ama a língua, sempre em busca de autores menos consagrados que merecessem ser apoiados. Para trás ficam inúmeros projectos por acabar e inúmeros sonhos por realizar. Infelizmente, nem os políticos nem os meios de comunicação social deram o relevo devido à sua passagem para o lado outro deste espelho que é a vida. Ao ajudarmos a organizar o Colóquio deste ano, prestamos-lhe aqui uma singela homenagem nestes três dias, onde a sua presença se fará sentir e decerto nos ajudará a conseguir os almejados objectivos deste evento que vem colocar Bragança no lugar cimeiro e rarefeito das cidades dedicadas à preservação e discussão da língua portuguesa, a sexta mais falada em todos os continentes, por 200 milhões de pessoas.