Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


02-04-2013

Acordo ortográfico Para quê - Chrys Christello


Algumas Notas ao 2º protocolo modificativo do acordo ortográfico 2008

Chrys Christello, Presidente do Conselho Executivo dos Colóquios Anuais da Lusofonia, http://www.lusofonias.net/

Logo depois da independência do Brasil, os escritores diziam que não bastava uma independência política de Portugal, era preciso também uma independência cultural. Por isso, o Brasil nunca reconheceu a autoridade linguística de Portugal. As divergências ortográficas foram ocorrendo e, desde 1924, procura-se uma ortografia comum.

Em 1945, chega-se a um acordo de unificação, que se tornou lei em Portugal no mesmo ano. No entanto, como o Parlamento Brasileiro não o ratificou, a ortografia brasileira continua a ser regida pelas disposições de 1943.

Não faz sentido teimar em manter a obediência ao Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, celebrado entre Portugal e o Brasil em 1945 (quando ainda não havia televisão a cores, telemóveis ou Internet), acordo esse recauchutado no final do marcelismo com a exterminação dos acentos nos advérbios de modo. O que distingue
um língua viva de uma língua morta é precisamente o facto de estar em permanente evolução. Seria um esforço inútil não reconhecer as mudanças. Por alguma razão, não falamos latim. São os utentes menos cultos que fazem evoluir as línguas, que tendem para a simplificação e para a contaminação da escrita pela oralidade. Num momento em que escolas neozelandesas já aceitam que os alunos usem nos testes a escrita abreviada das SMS, seria tolo Portugal persistir em manter-se alheado do segundo protocolo do
novo Acordo Ortográfico.

O novo acordo, debatido desde 1986, culminou das negociações de especialistas incluindo Lindley Cintra, Malaca Casteleiro, Lurdes Belchior, Fernando Cristóvão e António Houaiss, e foi assinado pela primeira vez em 1990, por sete países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.
Devia entrar em vigor em Dezembro de 1994, mas só Portugal e o Brasil ratificaram o acordo. Quatro anos mais tarde, em 1998, um protocolo modificativo definiu que o acordo entraria em vigor assim que assinado pelos sete países. Só Portugal e o Brasil voltaram a ratificar.

Em 2004, um segundo protocolo modificativo não estabeleceu data para a entrada em vigor, mas deixou claro que bastava ser ratificado por três países. Brasil, Cabo Verde e S.Tomé e Príncipe ratificaram. Portugal fez compasso de espera. Uma das questões que se me põem é por que é que a origem popular de certas palavras da nossa língua só pode ser válida se ocorrer no “jardim à beira-mar plantado”, onde só habitam 3,33% dos 300 milhões de lusófonos. Temos de compreender que, a nível internacional, não há futuro para a língua portuguesa sem o Brasil. E está o Brasil empenhado em fazer do português um instrumento de afirmação externa? Não esteve, mas começa a estar. O Brasil está a começar a perceber que um instrumento fundamental para a afirmação de um poder à

escala regional ou mundial é a afirmação de uma língua. Ora se o português é a quarta língua, em termos culturais, a nível mundial, pois não tem as limitações geográficas do russo, do chinês ou do hindu, significa que tem uma capacidade única de se afirmar e nada melhor do que através dum acordo que reconhece as diferenças e afirma as
similaridades.

O grande mestre gramático Evanildo Bechara, patrono dos Colóquios Lusofonia diz que além de regras, a língua portuguesa têm variações: a escrita, a falada, a exemplar, a culta, a formal, a informal, etc. O certo, no caso, é ser 'poliglota na própria língua, que deve ter desde o domínio da escrita de um texto formal até a consciência a respeito
de uma conversa com um analfabeto. Muita gente pensa que a língua é unitária, homogénea, sem variedades.' A ocasião faz o falante. Essa coisa que parece óbvia não é simples: a língua deve ser usada de acordo com a vontade efetiva de fazer entender-se. 'O uso reflexivo da língua é uma exigência da boa transmissão de ideia.'

Embora tenha incorporado novidades dos estudos linguísticos, como as teorias do romeno Eugénio Coseriu e a distinção entre diacronia e sincronia, proposta pelo francês Ferdinand Saussure, a lição da sua gramática é a mesma em mais de 40 anos: um professor não pode se restringir a ensinar a diferença entre sujeito e predicado. Tem de
ensinar os efeitos da consciência desse saber no uso quotidiano da língua. O emprego das habilidades linguísticas, Bechara alerta, transita entre os polos da liberdade e da opressão. Língua é poder.

Ou mais do que isso. 'A troca da sua língua é quase igual à troca da sua própria alma, segundo dizia Gaston Paris, um filólogo francês do século 19.' Um gramático tradicional, mas nunca um purista, Evanildo Bechara preocupa-se com a língua exemplar, a da gramática, cuja fonte está nas obras de escritores consagrados. Ele afirma continuar forte a ideia de que é possível escrever como se fala. A consequência
de tal pressuposto é a valorização da língua falada em detrimento da escrita. A língua exemplar não pode cair na mão de pessoas despreparadas, que ditam lições inventadas em 'consultórios gramaticais', como as secções de jornais nas quais se discutem dúvidas elementares, para preencher as lacunas que os leitores trazem do sistema educacional brasileiro.

Já o outro patrono dos Colóquios da Lusofonia em Bragança e nos Encontros Açorianos da Lusofonia, o linguista João Malaca Casteleiro afirma que “vivemos numa «aldeia global», onde a alfabetização é cada vez mais importante, e a simplificação da ortografia seria uma ótima solução para tornar o processo de alfabetização mais fácil
e eficiente. É muito mais fácil para uma criança aprender a escrever acção sem c, ou óptimo sem p, e não seria tão grande o sacrifício para um adulto que já sabe ler e escrever".

É extremamente importante que os falantes do Português de vários países sejam alfabetizados e a alteração que o novo acordo propõe vem ao encontro desta necessidade. Hoje vive-se uma fragmentação da Língua Portuguesa. Tendemos a limitar o Português a Portugal e aos países de Língua oficial Portuguesa mas em Angola, 40% já reconhecem o Português como língua materna, quando em 1992 eram apenas 12 por cento. Há 20 anos que se discute o novo acordo
ortográfico da língua portuguesa e eu continuo a ouvir dizer que deveríamos respeitar a ortografia "natural" de cada país. O que isto tem de extraordinário é as pessoas acreditarem que a ortografia é "natural".

Pois bem, não só a ortographia não é "natural" como a intenção é precisamente a de não acompanhar a naturalidade com que se fala. Se assim fosse, os portuenses escreveriam "Puârto" e os lisboetas "Ljboa". Os cariocas não escreveriam "boa noite" mas "boa noitchi". Não há nada de errado em a ortografia ser uma norma "artificial": é
para isso que ela existe. A ortografia oficial serve para se usar em documentos oficiais.

Certamente expandir-se-á para outros usos, por inércia ou pragmatismo, mas que tem isso de mal? Fernando Pessoa continuou a escrever "monarchia" em vez de "monarquia" muito depois da reforma de 1911 e não veio daí mal ao mundo. Tal como na blogosfera
já existem portugueses e galegos a escrever segundo o acordo antes de ele entrar em vigor. Outra das coisas se dizem erroneamente são os argumentos protecionistas de que o acordo ortográfico vai permitir aos brasileiros entrar no mercado dos livros escolares em África. E a pergunta que faço é: em que mercado é que as editoras portuguesas
entraram? Em Angola ou Moçambique para onde mandam os monos que cá não conseguem vender ou obras fora de prazo? Se a África lusófona, que precisa de livros e alfabetização, for inundada de edições brasileiras baratas numa ortografia comum, isso é bom para os africanos em primeiro lugar, e eu fico contente por eles. E se as editoras portuguesas, que aliás são cada vez mais detidas por espanhóis e outros estrangeiros, não tiveram tempo para se adaptar a um acordo ortográfico que há 15 anos se sabe que vem aí, então estamos pior do que eu pensava. Chrys Chrystello Maio 2008.

"Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua  portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unicoodio que sinto, não quem escreve
mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse." Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego,
a propósito da Reforma Ortográfica de 1911

O novo corretor ortográfico assinalou os erros mas o sentido das palavras de Fernando Pessoa continua fácil de entender mesmo com a velha ortographia e syntaxe.

A língua evolui. Com ou sem acordo ortográfico, os nossos netos irão utilizar uma escrita tão distinta da atual como a nossa é distinta da dos nossos avós. A diferença é notória.

Vejam este texto. Em 1909, há 101 anos, escrevia-se assim:

Aos vinte e seis dias do mez de setembro do anno de mil novecentos e nove, nesta egreja parochial d’Amor, concelho de Leiria, diocese de Coimbra, baptizei solenemente um individuo do sexo femenino a quem dei o nome de Conceição, que nasceu nesta fregueziaá uma hora da noite de vinte e um do corrente meze anno, filha legitima de
Manuel Pontes e de Emilia Silva, trabalhadores, naturaes, moradores, parochianos e recebidos neste logare freguezia d’Amor, neta paterna de Jose Pontes e Thomazia de Jesus e materna de Antonio Serra e Joaquina Silva. Foram padrinhos Manuel Rainho Junior, trabalhador e Possidona de Jesus, solteiros, os quaes todos sei serem os proprios.
E para constar se lavrou em duplicado este assento que, depois de ser lido e conferido

perante os padrinhos, que não sabem escrever, eu só o assigno. Era est supra. O Parocho Joaquim Gonçalves Margalhau

E em 1805, há 205 anos, era esta a nossa ortografia:

Aos vinte e nove de Janeirode mil outocentose sinco baptizei e puz os Santos Oleos a Jose fº de Jose Ferrª Rico e sua mer Clara dos Ramos da Moita do Boi, netto Paterno de Antonio Ferrª Rico e sua mer Rosa Mª dos Stos do Cazal dos Loureiros junto a esta Vª e materno de Jose Frco Fazendeiro e de sua mer Maria dos Ramos do dº logar da Mouta do Boy. Padrinhos Jose Leal solteiro, e Frca dos Ramos do dº lugar da Mouta do Boy. testª Mel Frco e Jose Frco Fazendeiro da Mouta do Boy de q fiz este assento dia, mez, e era est supra.

Como podem reparar, também há 200 anos se abusava das abreviaturas. Não é caraterística exclusiva da geração SMS.

Em 1778, há 232 anos:

Aos sete de Mayo de mil e setecentos setenta eouto baptizou solemnemente e pôs os santos oleos o Rdo P. Coadjutor Joze Ferreira a Jozé nascido de oito dias, filho de Antonio Ferreira Rico, natural desta Villa e de sua Mulher Roza dos Santos, natural do lugar dos Bonitos, freguezia da Almagreira. Neto Paterno de Manoel Ferreira e de sua Mulher Francisca da Conceição, naturaes desta Villa, e pela parte Materna he Netto de Manoel Gonsalves e de sua Mulher Cristina dos Santos do lugar dos Bonitos da mesma freguezia de Almagreira. Forão PadrinhosJoze Teixeira desta Villa, e testemunhas
Sebastião José e Joze Joaquim desta Villa, de quefis este assento, queassignei

Em 1708, há 302 anos:

Aos vinte de Fevereiro de mil esette centose outo annos, contrahirão Matrimonio in facie ecclesia em minha prezença e das testemunhas abaixo nomeadas, André Gaspar filho que ficou de João Lopes dos Ratos, e Magdalena Domingues filha que ficou de João Domingues das Biqueiras, sendo primeiro corridos os banhos sem impedimto e
receberão as benções e forão testemunhasManoel Frz’ Carrisso, Manoel Frco dos Ratos, Antonio Domingues da Foz, e outras mas pessoas, e por verdade fiz este assento, que assinei era est supra. O P. Cura João Frz’ de Almeyda

Finalmente, em 1697, há 313 anos, finais do século XVII:

Aos trinta dias domes de outubro de mil e seis sentos e noventa e sette annos baptizou e pos os santosoleos o P. Mel Nunes mor na mata da torre a Jozeph fº de Pº Simones e de sua molher Izabel Denis mres noCazal do Bispo freguezia destaparrochial Igr de NSrª da
vitoria deste lugar de Famalicão. forão padrinhos Mel Nunes o mosso e Izabel do Couto fª de Manoel do Couto e de Maria frca moradores no Cazal do Bispo, em certeza de quefis este acento em que me assiney dia era mes est supra.Lourenco de Almeida.

Adaptado de texto no http://eternos.org/2010/02/06/acordo-ortografico-sim/

Sempre houve e haverá argumentos pró e contra as Reformas e os Acordos; mas a língua é um organismo vivo com a sua própria evolução. Poucos hoje seriam capazes de ler um texto original do século XV ou XVI. Como já o dissemos, repetidas vezes,o principal problema dos portugueses (muitos) é reivindicarem algo que não é seu: a língua, que espalharam pelos quatro cantos do mundo sem olhar a raças, cor, religião ou credo. Os nossos filhos usarão o novo (?) Acordo de 1990 e proporão novos acordos relegando palavras a arcaísmos e criando novas, revitalizando outras. Com todos os
erros e falhas que este AO possa ter é o que temos, vamos juntar-nos e começar a trabalhar para que o próximo seja melhor enquanto ensinamos aos jovens este, que já está velho de 20 anos e continua no berço, em cuidados intensivos devido à sobranceria de alguns iluminados "velhos do Restelo" arvorados em donos da língua sem se darem conta de que a prosseguirem nesta senda estariam a condenar o Português Europeu a um mera variedade dialetal rumo à extinção.

Acrescento (Dezembro 2009-Março 2010), pouco ou nada mudou e não se institucionalizou o uso do novo acordo em Portugal. Um bom sintoma é a introdução das novas normas na agência noticiosa oficial LUSA que vai “forçar” alguns oragos de informação a aceitarem as novas normas sob risco de perderem tempo a revertê-las para
o anterior acordo. Tergiversam os ministros e as ministras, adiam, postergam, como se a língua de todos nós pudesse esperar mais tempo. Alegam manuais e outras coisas mais tentando satisfazer os insatisfeitos e deixando insaciados os que aceitam as novas
normas. As vozes discordantes pululam, como sempre, a mudança é alérgica ao gene português europeu. Ouvem-se os mais díspares disparates e aleivosias contra o Acordo, alguns jornais ajudam, pois serve para aumentar a circulação e manter viva a chama
portuguesa dum “patriotismo”mais “patrioteiro” que qualquer nacionalismo bacoco.

Ninguém protesta contra os milhares de erros ortográficos e de atropelos à gramática nos jornais, na TV, nas legendas de filmes e em toda a sociedade em geral, com o excelente exemplo dado por ministros analfabetos. Com isso ninguém se preocupa desde que se não mexa na “NOSSA” língua portuguesa. Nós iremos continuar, nos
colóquios, a pugnar pela imediata introdução das reformas a todos os níveis na língua de todos nós e não dos portugueses.

Acrescento 2 Dezembro 2010 O Grupo Impresa aceitou a nova ortografia AO 1990 na televisão (Sic), Visão e Expresso mas a TV continua com legendas à antiga. O Parlamento Português vai adotar a nova ortografia a partir de 1 de janeiro 2011 mas as escolas e o ensino vivem noutra galáxia e continuam à espera. Aqui nos Açores,
trouxemos o Professor Malaca para dar uma semana de formação a professores, sensibilizando professores e uma ou outra escola mas nada mais se fez, e isto foi a exceção. Continuam a pulular na internet os protestos plenos de desinformação e erros contra o AO 1990 e sugeriu-nos o colega Rolf Kemmler que deveríamos começar nos Colóquios com um movimento alargado de apoio ao AO... Vamos a ver o que acontece...2011 veio e foi com a RTP e LUSA a darem o exemplo, o ensino nas escolas começou a aplicar com timidez as reformas e lentamente deixaram de se ouvir os "Velhos do Restelo"...simultaneamente as estações de televisão que não adotaram o AO começaram a meter c mudos em tudo o que havia revertendo muitas vezes para a grafia de 1911 ou 1945... Como resultado prático começaram a escrever "práctico" e a dar mais erros do que dantes...Nalguns casos começa a ser já agradável ver que
tradutores e legendadores começam a adotar a nova grafia...Os Colóquios cumpriram a sua missão e agora só terão de insistir na aplicação do mesmo AO 1990.