Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


10-06-2013

Cris e o Dragão: Entre Safos, Vênus , Atena & algumas deusas mais...


Cris e o Dragão: Entre Safos, Vênus , Atena & algumas deusas mais...

‘’Às vezes eu fico a pensar...

Qual será o meu grande amor?

Qual será a minha grande paixão?

Ainda não sei!

Pois acho que algum dia

Vou encontrar o meu grande amor...’’

Marisa Libório

Para Diedra Roiz

Duas mulheres, na mesa ao lado, gargalhavam bem alto. Quebravam assim, o clima sorumbático do lugar. Carolina ouviu, apesar do barulho que explodia nos alto-falantes, ela ouviu algumas frases desconexas, a princípio, trocadas entre as duas criaturas, que pareciam irradiar luz, em meio às trevas do recinto. Elas falavam uma língua estrangeira, a qual Carolina não soube precisar qual era. As duas trocavam carícias ligeiras e contidas. A teuta, de pele alvíssima, cabelo louro bem curto e olhos verdes, passou as costas da mão direita no rosto, sem maquiagem, da linda morena de longos cabelos, pele amendoada e olhos ligeiramente puxados, essa última ficou rubra e desviou o olhar para o lado. A mão da nórdica desceu do rosto, passou lentamente pelo longos cabelos da morena, alcançou o ombro, passeou pelo braço nu e, finalmente, mergulhou por debaixo da mesa, onde os olhos de Carolina não alcançavam. Carolina acompanhava o desenrolar dos fatos, com curiosidade, cada vez mais crescente, a cena que se desenrolava a poucos centímetros dela. A linda morena, então contorcesse e fez uma careta, que expressava prazer. Carolina ouviu os gemidos dela, que chegavam baixo em seus ouvidos, mas chegavam. A teuta, em um rompante, voltou-se para trás e olhou para Carolina, deu um sorriso cheio de malícia e piscou com um dos seus olhos verdes, brilhantes e cheios de desejo, depois trouxe a morena para si, de forma ríspida, as duas se beijavam de forma lasciva. Carolina ficou rubra, com a cena que acabara de presenciar.  

A cena foi interrompida, de repente, por outra mulher, que parecia fazer o serviço de segurança do lugar. Alta, cabelo negro como a noite mais escura e bem curto, vestida toda de preto, calçava coturnos bem engraçados, uma camisa regata, esmalte preto nas unhas, anéis de prata nos dedos, batom negro nos lábios, rímel marrom cintilante nos olhos, olhos negros como a noite, calça de silicone, um piercing no nariz e outro na sobrancelha esquerda e grosas correntes de prata no pescoço. O olhar de Carolina, deteve-se, por uns instantes, apenas, nos seios fartos da mulher, que parecia fazer a segurança do lugar. Carolina notou uma postura marcial naquela mulher, ou, pelo menos resquícios de uma formação militar, parecia pairar ali naquela mulher. Estava mais que explícito no andar durar, na rudeza no olhar, cheio de autoridade e no dedo em riste e a ferocidade nos atos, quando tratou com as duas mulheres. E uma olhada rápida, Carolina, também notou a tatuagem no braço esquerdo da mulher, era a mesma que Cris tinha feito na perna de Carolina, um dragão em forma de serpente. A ‘’segurança’’, falou no mesmo dialeto que duas estavam falando minutos antes, apontou para um canto escuro do lugar. As duas levantaram-se rindo, agiram como se fossem duas crianças travessas, em um dia de sol sem nuvens e desapareceram por fim, em meio à escuridão, para o lugar apontado pela segurança. A segurança bateu em retirada, como se estivesse em marcha, e também desapareceu em meio a escuridão do recinto. Carolina pensou se, de fato, estava acordada ou vivenciando um pesadelo.   

            – Cris, meu doce de gente, que tipo de lugar é este afinal de contas? – O olhar assustado de Carolina, divertiu Cris por uns instantes. A voz arrastada e vacilante da moça, em nada lembrava a autoconfiança e a determinação de antes. Parecia outra pessoa na frente de Cris, naquela altura.

            – O que foi Diaba? Não queria se divertir, nesta tediosa em enfadonha noite de outono? Não disseste isto pra mim há poucas horas? – Cris da uma gargalhada de leve e acendeu um charuto Havana, levou até os lábios carnudos, e deu uma baforada no ar, cruzou as pernas e tomou a pequena taça vinho entre os dedos de forma lenta, bebeu sem tirar os olhos de Carolina. O olhar de Carolina, se desviou e foi buscar um refúgio seguro em outro lugar.

 Pessoas vestidas de, sobretudo preto, pálidas e com os olhos cobertos de maquiagem, dançavam solitárias, olhavam para a parede nos corredores ao largo da pista de dança, na pista de dança estava vazia e as escuras com pequenos refletores produzindo pequenas ilhas de luz em meio na escuridão. De repente, uma mulher de cabelo castanho desgrenhado, maquiagem pesada no rosto, usando um corpete vermelho e preto, luvas pretas nas mãos que iam até o cotovelo, saia rodada também preta e calçando bota coturno, passou chorando perto da mesa de Carolina e Cris. O andar dela era trôpego, mas, não parecia estar bêbada ou mesmo drogada. Cambaleava e chorava em puro desespero, se ajoelhou no chão e levantou a mão direita na boca e a esquerda apontava para o chão, em um gesto teatral, um ato ensaiado, pareceu pelo menos aos olhos de Carolina. O som arrastado e melancólico, que explodia nas caixas de som, da lugar a uma música clássica, uma ópera muito antiga e cantada em alemão, mas com um sintetizador, ao fundo, dava o tom de modernidade para a peça musical. Aplausos são ouvidos, Carolina não soube o que pensar naquela hora, logo pensou no óbvio, estava presenciando uma peça de teatro barata e amadora, uma peça sem palco nem plateia aparente, pois, ninguém parecia se importar com a cena dramatizada pela atriz. E uma nuvem branca, toma conta do lugar, a temperatura do recinto caiu drasticamente. A mulher se levantou, e ainda com o andar ainda trôpego, e desapareceu em meio à bruma, estava em prantos e falava alto em uma língua que lembrava o alemão, e um violão lúgubre é dedilhado em algum lugar, o som parecia ver de diversos lugares. Carolina, por algum motivo, reconheceu a música, era uma música cigana muito antiga, tocada quase sempre em funerais, ou ocasiões tristes. Mas a música, que era executada, naquela hora, parecia ser uma versão moderna da mesma, pois, era executada um tanto mais rápida e sem emoção alguma, pelo menos o que pareceu aos ouvidos de Carolina. Cris estava impassível, olhava para Carolina e parecia não se importar com nada. Carolina calculou que Cris já vira a cena diversas vezes, por isso do pouco interesse pelo ato teatral. Carolina, em desespero olhou para o palco a poucos metros a sua frente, e notou a cena da mulher em prantos, projetada em um telão, era um filme gótico dos anos vinte, um filme mudo com legenda em inglês britânico. A mulher chorava a ausência do marido, que partira para a guerra, e prometera para si mesma, não enlouquecer de saudades do amado marido, que fora combater em terras distantes.    

            – Já disse que não quero saber de malcriação pro meu lado! Não me chama de Diaba, sou um anjo de pessoa, se queres saber! – A afirmação de tom ríspido da moça, deixou Cris sem chão, Cris não esperava tão reação da moça. De repente, uma dúvida brotou na mente de Cris naquela hora extrema. Surge então, a necessidade de decifra aquela criatura, bem na frente de Cris, era uma coisa incontrolável.

            – És um Anjo de pessoa ou uma Diaba hoje? Não podes ser as duas coisas ao mesmo tempo, meu bem! O que vai representar hoje, para mim de fato! Embora estejas bem longe dos palcos de verdade?

            – Palcos? Como tu sabe, que ando em palcos?

            – Hoje não meu bem, não gosto de mistérios, apesar de frequentar este lugar decadentemente belo, brumoso e enfadonho. Sou uma pessoa franca e bem direta, por sinal. Sou uma pessoa resolvida! Não gosto de joguinhos. Sou uma pessoa prática e não gosto de perder tempo, com coisas menores, miudezas, gente pequena e coisas afins. Meu anjo, de pessoa!– Cris sussurrava as palavras para Carolina, dando, assim, a impressão de que não queria que ninguém mais ouvisse o que dizia.

            – Não faço essa tipo de coisa sempre, se queres saber!

            – Que tipo de coisa, Diaba? Ficar ai na minha frente, com essa cara de espanto? E ainda se diz uma atriz... uma droga que és! Não se pode auto-enganasse por muito tempo. Os outros ‘’podes’’ sim, a si mesmo é complicado meu ‘’doce de pessoa’’!        

            – Não sou atriz! E nunca te disse para você que sou atriz!

            – Claro que não é... e não fica ai com essa cara de espanto, Diaba! A vida meu doce que gente não uma peça de teatro! Ela é incontrolável e imprevisível.

A segurança reaparece, como que por encanto, ela parecia bem maior agora aos olhos de Carolina. Disse algumas palavras no ouvido de Cris, esta ouve sem tirar os olhos de Carolina, Cris parecia uma pedra de gelo naquela hora. Carolina ficou intrigada, o tom autoritário e o ar marcial, sumiram por completo daquela mulher. O tom, agora, era de pura submissão e servilismo absoluto, era outra pessoa na frente de Carolina. A mulher agiu como se ela não existisse, como se Carolina não estive ali.

            – Boa noite, sua grossa! – Carolina não disfarçou o ciúme ao proferir essas palavras. A mulher, da uma olhada rápida para Carolina, como se pedisse desculpas, pela falta que acabara de fazer. Voltou a falar com Cris, dessa vez falou alto, no dialeto que usara para falar com as outras duas mulheres. Cris sorriu sarcasticamente, era um riso insano e Carolina ficou sem chão, não sabia o que pensar da cena presenciada por ela. Um turbilhão de sentimentos agora tomava posse de Carolina e se misturavam. As certezas e transformaram em dúvidas, ela não sabia o que vinha pela frente. Carolina, enfim se sente viva, pela primeira vez na jovem vida. Só não sabia até quando.

 ***

             O quarto a meia luz, deixou Carolina confusa, levou as mãos ao lado esquerdo da cama a procura de Cris. E só encontrou o vazio, em desespero, Carolina varreu o quarto com os olhos, ainda com os mesmos embaçados e mente atordoada. Ela vai encontrar Cris de pé, ao lado da cama, e diante de um cavalete, estava com o dorso desnudo, Carolina notou pequenas cicatrizes no corpo escultural de Cris, eram pequenos cortes verticais. Carolina imaginou que foram feitos por bisturis ou algo semelhante. Cris desenhava um esboço com fúria, parecia estar em transe. Carolina, no devaneio que se perdeu, notou só agora que Cris não possuía tatuagem alguma.

            – Cris meu amor, é engraçado, e só agora noto, que tu não possui tatuagem neste teu corpinho lindo? – A voz em falsete de Carolina, nessa altura não irritava mais Cris em absoluto.

            – Nem piercing, anéis ou mesmo brincos, Diaba! Não suporto sentir dor alguma, não me permito sentir dor alguma! – Cris pensou que, talvez, tenha dado espaço demais para Carolina. E de fato, o individualismo e o egoísmo de Cris eram tão internalizados, que não suportava excessos de sinceridades, dores físicas ou emocionais, como acabara de fazer. Cris não suportava ter que dar explicações, dos seus atos, para outras pessoas. Cris em absoluto, não suportava dores no corpo e na alma, de forma que fosse, fosse como fosse. A muito Cris abdicou, das dores e privações, decorrentes de vaidades e coisas correlatas. Isso, em definitivo, deveria ser uma coisa menor, e só para os outros: – Meu corpo e santo e é sagrado! Falou Cris para si, relembrando as palavras da outra, que estava deita na sua cama. Bem queria dividir, essas particularidades, com mais profundidade com Carolina, mas, quem sabe outro dia ou em outra vida. Era esse o pensamento corrente de Cris, naquela hora tediosa. 

            – Vem dormir! Meu amor! Quero-te! – A voz sonolenta e queixosa de Carolina, parecia um convite as coisas que Cris renunciara, havia muito tempo, Cris não poderia amar ninguém além dela mesma. Cris pouco se importou, em absoluto, com o pedido desesperado da outra deitada na cama. O quadro, era a única coisa que importava naquela hora do ocaso. Era a reprodução de uma oriental em trajes típicos, sentada em um trono igual a uma rainha. Tinha o sorriso terno e uns olhos diabólicos, cheios de maldades.  

 Samuel da Costa é contista em Itajaí