Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


28-08-2013

Noturno Inácio Rebelo de Andrade


«Ouviu o barulho matraqueado das culatras das espingardas»

 

 NOTURNO

 

     Ling Pu era ali o 232 e não merecia outro tratamento dos juízes.

     — 232, levante-se! 232, sente-se! — impunha o Cabo que estava de serviço na sala do julgamento.

     Quem presidia à sessão era um General de três estrelas, ladeado por um Coronel, que fazia a acusação, e por um Major, que fazia a defesa, mais dois oficiais de patente menor, situados nos extremos da mesa. Cinco homens fardados como convinha, designados pelo Estado-Maior, que iam decidir sobre o destino de outro homem, cujo crime fora abandonar as fileiras e fugir da guerra.

     O Coronel da acusação levantou-se e fez o libelo na sua voz de cana rachada. Falou do prestígio do Exército, da soberania na­cional, do respeito pelo passado, mas também do perigo do precedente, do dever de lutar pela Pátria, da infâmia da deserção. De vez em quando, interrompia o discurso: bebia dois ou três goles de água do copo que tinha em frente, enxugava os lábios com um lenço, tossia ligeiramente e voltava a assestar os óculos. Já recomposto, continuava no mesmo tom.

     O Major da defesa levantou-se a seguir e tentou desempenhar o seu papel. Não foi muito convincente: talvez porque acreditava também nos valores acabados de lembrar (o tal perigo do precedente, o respeito pelo passado, a soberania nacional, o prestígio do Exército, etc., etc.). Falava muito depressa, mostrando bem como se queria livrar rapidamente daquela incumbência.

     Apresentadas as alegações finais, os juízes puseram-se todos de pé, enfiaram os quépis na cabeça e perfilaram-se como era da ordem.

     Um silêncio pesado e espesso, prenunciador de tragédia, invadiu a sala.

     O Cabo mandou pela última vez:

     — 232, levante-se!

     O Juiz Presidente leu a sentença: no pátio do quartel, ainda mesmo nesse dia, à vista do regimento inteiro, o réu seria fuzilado, para expiação da falta e servir de exemplo.

     Ling Pu foi levado pela porta do fundo, os braços e as mãos atados atrás das costas. Escoltado pelos guardas, atravessou a parada, respirou profundamente o ar fresco desse fim de tarde, agora já sem dúvidas nenhumas de que ia mesmo morrer. Ainda bem... estava farto dos interrogatórios, das noites passadas em vigília, dos insultos obscenos do carcereiro.

     O corneteiro tocou a reunir. Das casernas, primeiro da Ala Norte, depois da Ala Sul, a seguir da Ala Este, por fim da Ala Oeste, os soldados vieram a correr. Formaram um cordão de corpos alinhados, que coleou por instantes como uma cobra, mas que rapidamente, em dois ou três segundos, se aquietou.

     Àquela hora, com a chegada da noite, o céu esmaecia em tons de cinza e laranja. Num chilrear ensurdecedor, os pardais recolhiam às copas das árvores, à procura de um ramo para dormir.

     Ling Pu foi atado ao poste cilíndrico de madeira, mas não deixou vendar os olhos. Ouviu o barulho matraqueado das culatras das espingardas.

     Sem perceber porquê, lembrou-se do tempo em que era criança, quando na manhã do seu aniversário, ainda deitado na cama, recebia os presentes oferecidos pelos pais. Lembrou-se dos beijos repenicados da mãe, da mesa cheia de guloseimas, das lâmpadas coloridas e pequeninas que piscavam no teto.

     De espada ao alto, como era também da ordem, o comandante do pelotão deu as instruções:

     — Atenção!, preparar!

     O fim vinha aí...

     Ling Pu fechou os olhos nesse momento, escutou ainda a rajada assassina.

 

***

     De um salto, sentou-se na cama e acordou. O apito de um barco soava lá longe, no cais.

     A mulher dormia ao lado, respirando pausadamente. 

 

Inácio Rebelo de Andrade

in O Sabor Doce das Nêsperas Amargas

Contra-Regra, Lisboa, 1997 (versão revista pelo autor)