Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


06-01-2014

Isac Nunes partilha Pasquale Cipro Neto no


http://br.groups.yahoo.com/neo/groups/dialogos_lusofonos/

Argumentos e contra-argumentos

Está no programa de redação da Fuvest: "A redação deverá ser, obrigatoriamente, uma dissertação, na qual se espera que o candidato demonstre capacidade de mobilizar conhecimentos e opiniões, argumentar coerentemente e expressar-se de modo claro, correto e adequado". É óbvio que não é só no vestibular que se deve "argumentar coerentemente"; isso é necessário em qualquer manifestação de pensamento.

 

Como se sabe, dissertar é defender uma tese. Por incrível que pareça, ainda há colegas que dizem aos seus alunos que eles não devem "dar opinião" ou que devem assumir posição neutra, o que implica "mostrar um ponto a favor e outro contra". E concluir pelo "muro". Ai, ai, ai...

 

Tomemos como exemplo o tema do ano passado, baseado numa peça publicitária de um cartão de crédito ("Aproveite o melhor que o mundo tem a oferecer com o cartão de crédito X"). Assim terminava o enunciado: "Procure argumentar de modo a deixar claro seu ponto de vista sobre o assunto". Viu que é preciso, sim, apresentar um ponto de vista, isto é, defender uma posição?

 

"E se o examinador tiver uma posição diferente da minha?" Nenhum problema, desde que ele não seja um doido varrido. Examinador decente não julga o ponto de vista do candidato; julga como o candidato apresenta esse ponto de vista. É aí que entra o item "argumentar coerentemente", o que, em outras palavras, significa que os argumentos precisam sustentar-se, ter nexo e ser imunes a contra-argumentos.

 

Quer um bom exemplo? A recente tentativa do ministro da Fazenda de adiar a obrigatoriedade do airbag e do ABS nos carros nacionais. O argumento do ministro (e dos supermodernos sindicalistas)? Com o fim da produção dos automóveis nos quais a introdução dos equipamentos de segurança seria tecnologicamente inexequível ou economicamente inviável, X funcionários perderiam o emprego. Deus do céu!!!

 

Como bem me disse o jornalista Luís Perez, especialista em automóveis, "quando aventaram a possibilidade de prorrogar o prazo, senti vergonha alheia". Também senti.

 

O ministro e os sindicalistas não sabem que a manutenção desses (poucos) empregos não justificaria os altos gastos do Estado com os tratamentos e as pensões resultantes dos acidentes, ferimentos e mortes que seriam evitados com o ABS e o airbag? Esse pessoal não sabe fazer contas? É também insensível e incapaz de relacionar lé com lé e cré com cré? A genial posição do ministro e dos sindicalistas constitui um forte exemplo de argumento incoerente, insustentável. Zero para eles!

A respeito da obrigatoriedade do airbag e do ABS, Hélio Schwartsman escreveu nesta Folha o texto "Paternalismo Libertário" (21/12/2013), em que discutiu o aspecto filosófico da questão. Não lembro a razão pela qual antes de ler o texto de Hélio li alguns comentários sobre ele. Macaco velho, pensei com os meus botões: "O Hélio não deve ter dito uma bobagem dessas". E fui ler o texto. Bingo! Para variar, muita gente não entendeu patavina. Hélio não é contra a obrigatoriedade do airbag e do ABS; é a favor do livre arbítrio, o que, no caso, não inclui o ABS (porque esse equipamento pode evitar danos a terceiros). Hélio diz que, para que se conservassem as virtudes públicas da obrigatoriedade e se preservasse a liberdade individual, bastaria exigir do interessado em abrir mão do airbag (em troca de preço menor dos automóveis) a assinatura de formulários que isentassem os fabricantes e o Estado de qualquer responsabilidade por sua escolha. Para variar, muita gente meteu os pés pelas mãos na hora de ler o texto do grande Hélio e acabou vendo nele relações e posições que não há.

 

Não é à toa que muita gente vai mal não só na redação, mas também nas questões de compreensão de texto. Quem pensa mal lê mal e escreve mal. Pensar não dói, caro leitor. Vamos lá! Coragem! E, se quiser um bom treino, fuja dos "debates" nas "redes sociais". A bobajada é de doer. Os argumentos são de uma incoerência assustadora! É isso.


Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".

 

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/pasquale/2014/01/1392204-argumentos-e-contra-argumentos.shtml