Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


15-11-2004

PORTUGAL, NAÇÃO MELANCÓLICA Jaime Ginzburg


Jaime Ginzburg
Universidade Federal de Santa Maria

A identificação da presença de melancolia na lírica de Álvares de Azevedo é antiga e remonta a Machado de Assis, em seu comentário sobre a Lira dos vinte anos de 1866.

A melancolia de Azevedo era sincera. Se excetuarmos as poesias e os poemas humorísticos, o autor da Lira dos vinte anos raras vezes escreve uma página que não denuncie a inspiração melancólica, uma saudade indefinida, uma vaga aspiração. Os belos versos que deixou impressionam profundamente; "Virgem morta", "À minha mãe", "Saudades", são completas neste gênero. (...) Que poesia e que sentimento nessas melancólicas estrofes!" 1

O adjetivo "sincera" aponta para uma conexão profunda entre os sujeitos líricos criados pelo poeta e sua própria condição pessoal. A idéia de uma "essência melancólica" do autor foi sugerida por Joaquim Norberto de Sousa e Silva e Brito Broca. Comentando sua formação, Norberto afirma que Azevedo "tornou-se melancólico na mocidade", atingido pela solidão. 2 Embora reconheça seus momentos de "expansividade", Broca afirma que em suas cartas há uma "profunda melancolia" 3, e comenta, a respeito do modo de representação do espaço em Macário, que "a melancolia de Álvares de Azevedo, projetando-se na paisagem, tornava tudo cinzento e lúgubre". 4

Para Sílvio Romero, em Azevedo havia uma "melancolia inata". 5 Em sua História da literatura brasileira, define o poeta como "um melancólico (...) que enfermou o espírito", e propõe que a origem de sua melancolia não está em "injustiças sofridas" ou "traição de amantes nem de amigos", mas essencialmente na "vacilação de suas idéias". 6

Ronald de Carvalho vê Azevedo como expressão exemplar do "mal do século", e assinala a presença da melancolia na Lira dos vinte anos. 7Entre os críticos de Azevedo, Antonio Candido se destaca pela constância com que reconheceu a presença da melancolia em sua produção. Ele a aponta genericamente, 8 e destaca o traço em alguns poemas - Idéias íntimas, 9 Lembrança de morrer 10 - e na Noite na taverna. 11

Em Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira, de Paulo Prado, além de referências à melancolia no romantismo brasileiro, a Álvares de Azevedo e à Noite na taverna, é apresentada a interpretação de que existiria uma homologia entre a poética do período e a situação do país, agredido por uma história de valores degradados - "melancolia do povo, melancolia dos poetas". 12 Parte do raciocínio foi reelaborada por Jamil Haddad, que situa Azevedo numa São Paulo melancólica. 13

Enquanto, por um lado, em Carvalho, a presença da melancolia em Azevedo serve como argumento para integrá-lo aos moldes da literatura européia, por outro, em Prado e Haddad, ela manifesta um mal-estar da sociedade brasileira. A interpretação desse tópico não é o único aspecto em que a crítica se divide com relação à brasilidade de Álvares de Azevedo. Encontramos a compreensão de que "sua poesia não revela nenhuma impregnação afetiva e enfática da realidade nacional ou do momento histórico em que surgiu. Esporádicas ou meramente circunstanciais as manifestações do instinto de nacionalidade que o arrebataram momentaneamente do subjetivismo lírico em que encontrava o clima ideal". 14 Manoel Bonfim, por sua vez, observa um vínculo profundo entre a produção de Azevedo e a "alma do Brasil". 15 Em uma de suas frases, além de defender o poeta, traça uma conexão profunda entre ele e o país: "Os próprios exageros e erros de ingenuidade, o Brasil reconhecerá como caracteres seus". 16 Em um caminho diferente do trilhado por Paulo Prado, Bonfim também pretende ver em Azevedo marcas essenciais da nação.

Alguns estudos comparatistas levam a crer que, embora suscetível a influências, e interessado em modelos europeus, Azevedo não se comportava como reprodutor passivo. Tanto Maria Alice de Oliveira Faria, discutindo as relações do poeta brasileiro com Musset, como Onédia Célia Barboza, avaliando a leitura de Byron feita por Azevedo, apontam para a idéia de que este tinha uma elaboração com características próprias de idéias, temas e imagens extraídos dos autores europeus. No primeiro caso, por exemplo, a autora explica que as representações da sexualidade, em Musset, têm traços realistas, ao passo que em Azevedo têm acento onírico. O estudo de Barboza revela que Azevedo se propôs a traduzir o poema Parisina de Byron e, ao fazê-lo, através da seleção lexical e da disposição das imagens, "tornou-o muito mais sombrio". 17

Álvares de Azevedo, ao assimilar propostas desses autores para o interior da cultura brasileira, reforçou ligações entre as idéias estéticas nacionais e estrangeiras. No entanto, além disso, interferiu na dinâmica interna do sistema de idéias do país. O negativismo de Azevedo destoa, de acordo com Dante Moreira Leite, de uma tendência de representação da "grandeza da natureza tropical" no Brasil, levada à condição de estereótipo. 18 Em uma passagem de Macário, comentada por Leite, 19 o personagem principal contesta a representação positiva da natureza brasileira, afirmando que "tudo isto é sublime nos livros, mas é soberanamente desagradável na realidade!". 20

Para aceitar, em termos metodológicos, as idéias de Manoel Bonfim sobre o poeta, seria preciso aceitar a premissa de que exista uma "alma brasileira", homogênea e bem caracterizada, uma unidade que represente a identidade nacional em sua essência, a realidade em seu conjunto. Essa premissa é inviável, e sua fragilidade fica mais exposta diante da importância assumida na produção do país, em vários autores, de um "conceito agonístico de nação", que ressalta tensões e impasses, explicado por Alfredo Bosi. 21

Dentro dessa linha de raciocínio, para propor uma homologia entre a estética de Azevedo e a realidade brasileira, uma mediação consistente seria um texto de Augusto Meyer, que defende que, no romantismo, "o paradoxo era uma conseqüência inevitável das condições de desterro cultural em que vivíamos". A presença de elementos estrangeiros em nossa literatura foi explicada por ele do seguinte modo.

"Tudo isto correspondia ao vazio brasileiro, à tenuidade da nossa consciência nacional, sem lastro de tradições sedimentadas, capaz de alimentar a obra literária prescindindo do arrimo de influências peregrinas [ em uma terra em que ] tudo ainda é conjetural, problemático e conjugado no futuro". 22

Os trabalhos de Faria e Barboza, ao apresentarem a relação ambivalente de Azevedo com Musset e Byron, respectivamente, expondo que o poeta brasileiro assimilava elementos mas não os reproduzia passivamente, sugerem que o autor, mesmo vinculado aos modelos externos, guardava especificidades. Essa ambivalência estaria relacionada ao "desterro cultural" de que fala Meyer, resultante de contradições políticas e econômicas da sociedade brasileira oitocentista.

Álvares de Azevedo não chegou a formular um conceito bem determinado de nacionalismo, e não pretendeu assumir compromisso nesse sentido. Elaborou uma reflexão, incipiente e metodologicamente imprecisa, a respeito dos critérios de definição de nacionalidade em literatura. Dessa reflexão, cabe resgatar um ponto.

Em uma passagem de Hispania, parte de seu estudo Literatura e civilização em Portugal, o poeta escreve que acredita em uma necessária integração entre língua e literatura - "sem língua à parte não há literatura à parte". 23 Esse argumento poderia funcionar como premissa da idéia de que as literaturas portuguesa e brasileira constituiriam um único sistema. Não é bem isso o que Azevedo pensa. O curso de seu raciocínio encaminha para dois desdobramentos. O primeiro, polemizar a respeito da "brasilidade" de autores como Santa Rita Durão, Alvarenga, Basílio da Gama e Tomás Antônio Gonzaga. Diz ele: "os heróis do Uraguai e do Caramuru eram portugueses. Não há nada nesses homens que reslumbre brasileirismo". 24

O conceito de "brasileirismo", estritamente, não está definido. Isso permite a Azevedo um segundo desdobramento: a possibilidade de assimilação para nossa literatura de autores portugueses.

"(...) por causa de Durão, não podemos chamar Camões nosso; por causa, por causa de quem?... (de Alvarenga?) nos resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos de Bocage!" 25

Nas páginas que dedica a Bocage, Azevedo ressalta, como qualidades, os traços melancólicos do autor. Caracteriza-o como "bem infeliz", 26 solitário, jogado na ausência de luz, "sofrendo da dor no coração", 27 marcado pela saudade, 28 ébrio, incerto, desesperado, 29 dotado de "imaginação ardente", 30 autor de poesia "tão pura em sua melancolia". 31 Ele acredita que em Bocage "traduz-se uma era inteira. É o espelho onde passa com sua flutuação de luz e sombra no roxo crepuscular de uma nação a hora turva em que tudo se agita lugubremente, como por um enterro ou um nascer doloroso (...) Portugal se mergulhara no crepúsculo". 32 A premissa da argumentação de Azevedo consiste em que traços essenciais de um país podem ser encontrados em sua literatura. O mal-estar da civilização portuguesa, suas frustrações, seu "crepúsculo", estariam traduzidos na melancolia de Bocage.

As idéias de Azevedo sugerem que Camões e Bocage mereçam ser reconhecidos como "nossos", isto é, como brasileiros, mais do que Alvarenga ou Durão, e não como "estrangeiros". Seus comentários sobre Camões são mais curtos, e não autorizam especulações tanto quanto as idéias sobre Bocage. Na medida em que a melancolia deste, acentuada insistentemente por Azevedo, traduz o "crepúsculo" português, e se Bocage não merece ser tratado como "estrangeiro", temos um caminho aberto para a analogia.

Uma das razões de Álvares de Azevedo valorizar tanto esse poeta português está em que nele encontra elementos de seus próprios interesses estéticos, e de sua melancolia. Um desdobramento natural dessas afinidades eletivas estaria em uma expectativa teórica, por parte de Azevedo, de que sua produção traduzisse, de algum modo, a situação brasileira.

Não há dados textuais suficientes para afirmar, com segurança, que Azevedo aplicaria esses pressupostos a si próprio, com uma consciência minuciosa a respeito das implicações estético-políticas de sua produção. Podemos apenas supor, a partir dos comentários sobre literatura portuguesa, que, mesmo não discutindo diretamente, na maioria de seus textos, temas cruciais da época, mesmo passando ao largo de questões como o escravismo e a desigualdade social, acreditava que a melancolia de sua produção, tal como a de Bocage, traduzisse, de algum modo, o mal-estar de sua sociedade.

Seus dualismos estariam, nesse sentido, ligados ao "paradoxo" descrito por Augusto Meyer. Se aceitas essas premissas, a leitura que Azevedo sugeriria de sua própria produção, através de sua compreensão do poeta português, estaria associada a uma idéia cara ao romantismo alemão: o olhar mimetiza o objeto; para apreender uma realidade contraditória, é necessário ter uma atitude de percepção ambivalente. 33 O dualismo e a melancolia de Azevedo seriam, para essa perspectiva de leitura, historicamente motivados.

 

Notas

1. ASSIS, Machado de. Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos. In: ____. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994. p.893-4.

2. SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto de. Notícia sobre o autor e suas obras. In: AZEVEDO, Álvares de. Obras. Rio de Janeiro: Garnier, s.d. 6 ed. T.1. p.39.

3. BROCA, Brito. Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. São Paulo: Polis / INL, 1979. p.118.

4. Idem. p.207.

5. ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960. T.3. p.950.

6. Idem, p.952.

7. CARVALHO, Ronald de. Álvares de Azevedo (1831-1852) e a poesia da dúvida. In: ___. Pequena história da literatura brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguet & Cia, 1955. p.224 e 226.

8. CANDIDO, Antonio. Cavalgada ambígua. In: ___. Na sala de aula. São Paulo: Ática, 1996. p.44. CANDIDO, Antonio. Apresentação. In: AZEVEDO, Álvares de. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 1994. p.15.

9. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. op.cit. p.190.

10. CANDIDO, Antonio. Apresentação. op.cit. p.14.

11; CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. op.cit. p.18.

12. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil - ensaio sobre a tristeza brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1962. Conforme, especialmente, páginas 141-3 e 148-50.

13. HADDAD, Jamil Amansur. Álvares de Azevedo, a maçonaria e a dança. São Paulo: CEC, 1960. p.79-80.

14. GOMES, Eugênio. O individualismo romântico. In: COUTINHO, Afrânio, org. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: UFF, 1986. v.3. p.746. Conforme também TORRES, Alexandre Pinheiro. Álvares de Azevedo. In: ____, org. Antologia da poesia brasileira: do Padre Anchieta a João Cabral de Melo Neto. Porto: Chardron, Lello e Irmão, 1984. v.1. p.921-2.

15. BONFIM, Manoel. Álvares de Azevedo. In: ___. O Brasil-Nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p.309.

16. Idem, p.304. A argumentação de Bonfim não desenvolve este ponto específico, de modo que os termos da homologia não ficam conceitualmente determinados.

17. Conforme FARIA, Maria Alice de Oliveira. Astarte e a espiral. São Paulo: CEC, 1970. Em especial, por exemplo, p.150. BARBOZA, Onédia Célia de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974. p.161-3.

18. LEITE, Dante Moreira. Romantismo: a independência e a formação de uma imagem positiva do Brasil e dos brasileiros. In: ____. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1983. p.181.

19. Idem, p.182.

20. AZEVEDO, Álvares de. Obras Completas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. v.2. p.66.

21. BOSI, Alfredo. O nacional e suas faces. In: V.V.A.A. Eurípedes Simões de Paula: in memoriam. São Paulo: FFLCH-USP, 1983. Em especial, p.41 e 44.

22. MEYER, Augusto. Nota preliminar. In: ALENCAR, José de. Obras completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. v.2. p.22-4.

23. AZEVEDO, Álvares de. Obras completas. op.cit. V.2. p. 339.

24. Idem, p.341.

25. Idem, p.340.

26. Idem, p.385.

27. Idem, p.377.

28. Idem, p.383.

29. Idem, p.379.

30. Idem, p.381.

31. Idem, p.382.

32. Idem, p.387.

33. Conforme a teoria da ironia exposta em WELLEK, René. História da crítica moderna. São Paulo: EDUSP/Herder, 1967. v.2. p.13.