Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


26-06-2014

Velhos Casais António Tomás


António Tomás *

25.06.2014 • 00h00 • atualizado às 11h32
O homem saiu do mar. Se fosse barbudo, e se viesse num barco pequeno e frágil podia parecer saído do Velho e o Mar, de Ernest Hemingway. Mas não. Ele tinha toda a moderna parafernália dos praticantes de um desporto (passatempo?) muito popular na Cidade do Cabo: o kitesurf.O homem era bastante idoso. Naquela idade em que já não imaginamos que nos vai apetecer fazer kitesurf. Devia ter uns sessenta e cinco anos. Ou talvez mais. Ter praticadokitesurf com toda aquela perícia, certamente, deve ter ajudado a mantê-lo conservado. Tinha já cabelo ralo em muitas partes da cabeça. Era alto, forte, e com a pele curtida pelo sol, com a aparência de quem tinha passado grande parte da vida perto do mar.O homem pôs-se a lavar o equipamento. Com a ajuda de uma mangueira, foi aspergindo a vela, o barco e, depois, o fato que ele próprio vestia. Ele já estava em fato de banho, com o dorso nu, quando chegou uma mulher que se colocou ao seu lado. Ela era tão alta como ele, magra, e tinha o cabelo igualmente grisalho.Trazia duas garrafas de cerveja. Entregou uma ao homem, sem uma palavra, enquanto bebia da outra. O homem, entretanto, já tinha acabado de limpar e arrumar o seu material. Ficaram os dois, assim, a beber cerveja, sem grandes conversas, sem grandes sorrisos, a contemplar o sol que se punha do outro lado da montanha.Esta imagem do casal que bebia cerveja era apenas um dos vários quadros que eu podia ver da esplanada do restaurante onde me encontrava. Ainda havia muita gente a praticarkitesurf, mas o que me chamou a atenção em tudo na contemplação daquele casal nem era o facto de um homem que parecia ter uma idade em que grande parte dos homens se resigna à velhice. Era que o tal homem e a tal mulher pareciam um casal tão feliz no seu silêncio.Apreciar casais velhos é um dos meus novos interesses. E a Cidade do Cabo parece ter imensos. Casais que se passeiam pelo Promenade (marginal) no final da tarde. E fico a pensar em qual será a fórmula para que duas pessoas envelheçam juntas. É verdade que ver duas pessoas, idosas e juntas, pode não significar necessariamente que tenham envelhecido juntas. Há pessoas já de idade que se encontram em fases de reconstituição das suas vidas. Às vezes, depois de divórcios sórdidos, com questões de partilha de bens e a incerteza sobre o futuro dos filhos.Mas aprendi, e posso estar errado, que uma coisa que faz velho um casal de pessoas idosas é uma certa serenidade. Aquela paz de espírito que parece emanar dos dois. E, sobretudo, o silêncio. O silêncio de duas pessoas que se querem muito, que querem estar juntas, e que não precisam de inventar conversas com medo que o silêncio se cave como um fosso na sua relação. E nós, já não tão novos, o que nos apetece perguntar é: como envelhecer numa relação?CrónicasANTÓNIO TOMÁSLuanda, 1973. É ensaísta, académico e professor. Doutorado em Antropologia. É autor de "O Fazedor de Utopias: Uma biografia de Amílcar Cabral" e de "Poligrafia das páginas de jornais...partilhado por Milu Silveira no facebook  http://www.redeangola.info/opiniao/velhos-casais/