Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


24-06-2004

Leonel Brizola- A Morte de um Líder MOACYR SCLIAR


MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA de SÃO PAULO

O Rio Grande do Sul sempre foi considerado uma terra de caudilhos, o que não é de admirar quando se considera a origem do Estado, conquistado a ferro e fogo aos espanhóis. As terras foram então divididas entre os líderes vitoriosos, o que deu origem ao latifúndio gaúcho. O estancieiro era uma figura destemida, mas também politizada (o positivismo foi uma grande influência na região), e ao mesmo tempo paternal, simples e até melancólica, bem diferente do clássico caudilho latino-americano, exuberante, extravagante. Os aposentos de Getúlio Vargas no Palácio do Catete eram de uma simplicidade monástica e foram o cenário para aquela grande tragédia brasileira: seu suicídio, em 24 de agosto de 1954.

É possível dizer que Leonel Brizola (1922-2004) foi um caudilho, o último caudilho gaúcho, talvez? Certamente essa expressão será usada em relação a ele, mas não corresponde à realidade. Para começar, Brizola era de origem humilde; filho de pequenos agricultores, trabalhou como jornaleiro, engraxate, carregador. Com muito sacrifício formou-se em engenharia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas de imediato optou pela política, ingressando no PTB de Getúlio Vargas, que alavancou sua carreira. Foi eleito deputado estadual, depois prefeito de Porto Alegre e, em 1958, governador do Estado. Mostrou-se um grande empreendedor, criando mais de 6 mil escolas públicas, uma rede que ainda hoje faz do Rio Grande do Sul um dos Estados de maior nível de alfabetização.

Mas o grande momento de Brizola ainda estava por vir. Em agosto de 1961 Jânio Quadros subitamente renunciou à Presidência. Deveria assumir o vice, João Goulart, que não havia sido eleito na chapa de Jânio; naquela época o que contava era o número de votos. Jango encontrava-se na China, mas a sua posse não seria aceita pacificamente; lideranças militares viam com suspeição suas ligações com o sindicalismo e com a esquerda.

Um golpe começou a ser articulado e parecia inevitável, quando, no Rio Grande do Sul, surgiu a resistência encabeçada por Brizola. Esse movimento, conhecido como legalidade, marcou época na história gaúcha, e disso posso dar testemunho pessoal pois, estudante universitário, participei, como meus colegas, em todos os momentos dessa jornada.

A mobilização popular foi, em grande parte, espontânea, ainda que amadorista; do Palácio Piratini, sede do governo, Brizola tentava organizar o movimento. Todos os dias uma grande multidão se reunia na Praça da Matriz, em frente ao Palácio. E todos os dias Brizola assomava a uma janela do prédio para falar com as pessoas. Impressionava sobretudo sua tranqüilidade. Claramente, sabia que estava enfrentando uma situação de grande risco, em que desfechos trágicos eram possíveis, coisa que ele procurava evitar. "Armas para o povo, governador!" era o brado que mais se ouvia, mas ele não deixava se contagiar por esse fervor guerrilheiro.

A Brigada Militar, força pública do Estado, não podia enfrentar as tropas federais, se tal conflito ocorresse. Houve um momento de grande tensão, quando se anunciou que os tanques do quartel da Serraria, bairro da zona sul, vinham em direção ao centro para bombardear o palácio. Em meio ao nervosismo, começamos a montar barricadas, usando os bancos da praça, e ali ficamos, em tensa expectativa.

Os tanques, porém, não apareceram. Mais que isso, o general Machado Lopes, comandante do poderoso 3º Exército, aderiu ao movimento, o que mudou por completo a situação: agora, a ameaça era de uma guerra civil. Entrou em cena a turma do deixa-disso. Políticos liderados por Tancredo Neves, ex-ministro da justiça de Getúlio Vargas, negociaram uma solução: João Goulart assumiria, mas com um regime parlamentarista, capaz de limitar drasticamente o poder do presidente.

Durante todo esse tempo, Brizola continuava dirigindo-se à população, agora usando uma grande cadeia de rádios, a cadeia da legalidade. Seu típico e pitoresco linguajar tornou-se conhecido em todo o país. Lembro-me de uma vez em que ele explicava o imperialismo. Usou para isso a metáfora de um tanque de água cujos donos enchiam com muito trabalho e cujo conteúdo era implacavelmente sugado por "bombas, bombinhas e bombículas".

Falava várias horas cada noite, mas isso não diminuía sua audiência. Como disse um casal de idosos gaúchos que então o visitou no Palácio: "É uma maravilha, governador. O senhor fala, fala, a gente adormece, depois a gente acorda e o senhor continua falando... Maravilha".

A posse de João Goulart não acalmou o país, pelo contrário. O movimento da legalidade transformou-se no movimento pelas reformas de base, das quais a principal seria a reforma agrária. Um plebiscito fez retornar o regime presidencialista e devolveu o poder a João Goulart, que agora parecia disposto a atender as reivindicações formuladas principalmente pela esquerda.

O golpe abortado em 1961 consumou-se em 1964. Disfarçado de soldado da Brigada Militar, Brizola saiu do país e só retornou 15 anos depois. A partir de então vitórias e derrotas se alternaram em sua carreira política. Perdeu a legenda do PTB para um grupo liderado por Ivete Vargas, mas fundou o PDT; perdeu as eleições para a Presidência, mas foi eleito governador do Rio. Ou seja: continuou brigando, até o fim. Como é típico dos caudilhos, mas é típico sobretudo dos líderes. Brizola foi, indiscutivelmente, um líder. E, para os que o conheceram, um ser humano inesquecível.

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Moacyr Scliar é escritor e colunista da Folha. É médico especializado em saúde pública e autor de "A Paixão Transformada - História da Medicina na Literatura" e "Os Leopardos de Kafka", entre outros.
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Folha de São Paulo(24/06/04)
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2406200426.htm