Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


10-11-2014

A minha Queda do Muro: Isolado no Cosmos


Carlos Fino

09/11/2014 18:56

Faz hoje 25 anos, assistia sozinho pela televisão, num quarto de hotel em Moscovo, a um dos acontecimentos mais marcantes do pós-guerra – a queda do muro de Berlim.

Faz hoje 25 anos, assistia sozinho pela televisão, num quarto de hotel em Moscovo, a um dos acontecimentos mais marcantes do pós-guerra – a queda do muro de Berlim.

Contra os meus mais básicos instintos de repórter, que me levavam a querer voar de imediato para a Alemanha, a fim de acompanhar ao vivo os acontecimentos, as circunstâncias obrigaram-me a permanecer na Rússia.

Enviado pela RTP - televisão pública portuguesa - com missão de abrir escritório e passar a acompanhar in loco os desenvolvimentos da Perestroika, tinha chegado poucos dias antes à capital soviética e agora que a reacção do Kremlin iria ser decisiva, não podia abandonar o posto.

Tudo aliás era ainda, na URSS, muito complicado – desde as simples comunicações telefónicas à marcação de uma viagem internacional – pelo que, mesmo que o tentasse, me arriscava a chegar atrasado a Berlim, onde a RTP já colocara entretanto um enviado especial.

Embora com muita pena, tive assim que me conformar com a situação, confinado a assistir isolado, num quarto do enorme e desconfortável hotel "Cosmos" - construído uma década antes para os Jogos Olímpicos de Moscovo – a esse momento-chave de abertura e viragem na Europa.

Como europeu, e ainda que à distância, partilhava naturalmente o júbilo geral pelo fim da divisão do continente, em particular esse momento de confraternização Leste-Oeste simbolizada na presença de Rostropovich tocando violoncelo junto às brechas do muro; mas, como repórter e cidadão, não podia deixar de sentir tristeza por não estar no local.

Também eu queria comungar daquele "ofício" que vira na televisão: qual sacerdotisa de uma religião acabada de inventar, uma mulher toda sorrisos distribuía em volta gratuitamente pedaços do muro acabados de arrancar...

Vieram-me então à memória as recordações de uma visita à capital da Alemanha, uns vinte anos antes, pouco depois de ter entrado para a faculdade.

Em catadupa, sucederam-se as imagens de momentos para sempre gravados no meu espírito: o contraste entre o brilho de Berlim Ocidental e a apagada e vil tristeza de Berlim Oriental; o contacto com um jovem funcionário público de Berlim-Leste que não aceitou o convite para almoçar num bom restaurante por receio de vir a encontrar o seu chefe; a pressa dele em ir para casa para ver um filme de cow-boys norte-americano transmitido pela televisão de Berlim Ocidental; o apartamento pobre e despojado em que vivia, de um só quarto com várias camas, num bairro ainda com vestígios do pós-guerra; a fúria do irmão mais velho quando voltou a casa e viu que ele tinha levado um estrangeiro até ali...

Agora que o muro caíra, onde estariam esses irmãos divididos pelo medo?

O paradoxo maior é que a minha presença em Moscovo pouco adiantava naquele momento.

Na URSS, a queda do muro não suscitou grandes reacções imediatas. O esencial já tinha sido negociado entre Kohl e Gorbachev e o importante agora é que o Kremlin não reagia, ou seja, contrariamente ao que sempre fizera noutras situações de crise do sistema, não daria ordem para as tropas avançarem.

O que Gorbachev certamente não previu é que daí a dois anos ele estaria fora do poder, a URSS desfeita e a Rússia de volta ao capitalismo. Como na altura me disse o general dissidente do KGB Oleg Kalúguine, "Gorbachev partiu em busca da Índia e encontrou a América".

Tudo iria portanto ser diferente, contrariando o desespero que a minha amiga russa Natacha um dia me expressara olhando para o que, nesses recuados anos 70, parecia a inquebrantável solidez do regime soviético: "Carlos, isto nunca, nunca irá mudar!"

Com a queda do muro, mudou tudo, incluindo as nossas expectativas. Do pessimismo e do medo de uma guerra nuclear, tantas vezes sentido durante a Guerra Fria, passámos a acreditar que se abria uma época de aproximação Leste-Oeste em que se poderiam começar a resolver, pela cooperação, os grandes problemas da Humanidade – a pobreza, as grandes desigualdes sociais, a deterioração do meio-ambiente, caminhando-se progressivamente para um mundo melhor e mais fraterno, com mais saúde, mais educação e bem-estar.

Um quarto de século volvido, infelizmente, muitas dessas esperanças evaporaram-se, criaram-se outros muros (Palestina, Irlanda do Norte, Norte de África...)  e assistimos até a um renovado confronto com a Rússia que pode recriar a Guerra Fria.

Mas a lição do muro de Berlim permanece. Seja qual for o regime que venha um dia a substituir-se à ganância financeira descontrolada e às guerras provocadas pela ambição de controlar as matérias-primas, seja qual for o nome que se dê à alternativa  à barbárie, ela só poderá vingar se não trair o ânseio de liberdade que há no coração de cada homem.

* Carlos Fino, jornalista português, foi enviado especial e correspondente internacional da RTP - televisão pública portuguesa - em Moscou, Bruxelas e Washington, e correspondente de guerra em diversos conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão,  Albânia, Oriente Médio e Iraque.  Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012), cidade onde atualmente reside.

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