Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


26-12-2015

Natal de Goa (1961) Vimala Devi


 

Também em Goa, pobres e ricos, muito portuguêsmente, fazem presépio. Certas famílias, com alguma antecipação, semeiam nachiniru, cereal que grela rapidamente, em terra espalhada sobre uma pequena tábua. Quando as folhinhas começam a aparecer, formam um tapete verde sobre o qual é armado o presépio de palha.

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Os preparativos iniciam-se com grande antecedência, principalmente com a confecção de certos doces típicos, que não faltam em nenhuma mesa, como os mandarês, hóstias grandes feitas de abóbora, secas ao sol e fritas em óleo de coco no momento de servir, assemelhando-se a bolachas muito finas, de excelente paladar. Outro doce peculiar a esse dia é o dodol, preparado com farinha de trigo, sumo de coco, jagra, castanha de caju e manteiga. O dodol ocupa sempre na sua confecção duas ou mais pessoas, que se revezam, pois cansa muito mexê-lo continuamente. De resto, a maioria dos doces goeses é feita por esse processo, como o doce de grão, o doce bagi, a mangada, a cocada, e outros. [...] E não podemos esquecer os neureus, semelhantes a rissóis mas recheados com coco ralado, cozido em mel de açúcar ou lentilhas, sendo tudo frito em óleo de coco ou assado no forno. E ainda os oddés (lê-se ores), feito- de farinha de trigo amassada em agua e sal, redondos e fritos também em óleo de coco a ferver.

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Outro elemento digno de menção especial é a iluminação das casas. Desde as vésperas de Natal até aos Reis, todos os lares católicos irradiam externamente uma luz suave proveniente de lanternas chinesas de diversos formatos e desenhos, com velas de cera acesas. [...] Um elemento, porém, é comum a todas: a estrela! É feita de bambu e forrada de papel de seda, branco ou de cores, e presa a um pau comprido espetado no chão. À noite, quando iluminada, dá-nos a impressão de uma estrela suspensa no céu límpido, evocando a que surgiu aos Reis Magos, assinalando o caminho de Belém.

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E a véspera de Natal termina com a Missa do Galo. Todos voltam lentamente para casa, cheretas a servir de lanternas, abrindo buracos na noite. Os doces ficam à espera, pois a consoada é a 25, no próprio dia de Natal, em puro convívio familiar, regalando-se então todos com a boa comezaina, variada e gostosa.
E a meio do dia surgem os farazes.
Os farazes são talvez a classe mais baixa, sem casta, descendente dos primitivos habitantes dravídicos. Vivendo em comunidade mais ou menos tribal e dedicando-se à manufactura de utensílios de bambu, constituem uma das camadas populacionais de Goa mais sinceramente católicas, desprezados como são pelos brâmanes e pelas outras castas arianas. Isso recorda-me palavras que o grande poeta Paulino Dias, na sua narrativa dramática Os párias, põe na boca de um faraz.

Os nossos maiores, Pralada, Ravana, Hiraniaxipú, Bali, bateram os Árias e comeram a sua carne. É a vingança, ó Jiubá, dos crimes das eras, os crimes de defender a sua choupana, a sua mulher e os seus filhos. Hoje o estrangeiro os devora com garganta de cobre aquecido. Eu sei que num país depois do mar os Árias são expulsos, feridos, sem poderem passar pelas ruas, entrar nos Dharmasadas e nas pousadas. Pagam pelo que nos fazem, ó Jiubá. Nós temos ainda os deuses deles, Shivá, Rama e Parvati, e eles não nos deixam pisar o degrau do seu templo. Mil vezes melhores os cristãos e muçulmanos que nos aceitam como irmãos.

Vimala Devi, in "Natal de Goa", Panorama Revista de Arte e Turismo nº 24-III Série-Dezembro de 1961, Edição do SNI Lisboa

 

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