Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


08-12-2014

O nosso país vive na contramão da democracia - Katrogi Nhanga Lwamba, em entrevista à Rede Angola


Por Domingos Bento (texto); Ampe Rogério (fotos).

 

Ampe Rogério/RA

Trazer conteúdos que estimulam as pessoas ao exercício da cidadania e à defesa dos direitos humanos tem sido a principal preocupação de Katrogi Nhanga Lwamba, o MCK, uma das vozes mais populares do rap nacional. Com três álbuns no mercado, Trincheira de IdeiasNutrição espiritual e Proibido Ouvir Isto, o artista diz ser constantemente alvo de ameaças e intimidações por causa da sua forma crítica de cantar e abordar a realidade social e politica do país.

Apesar de todas as tentativas que afirma terem existido de silenciá-lo, o  rapper afirmou ter uma coragem maior para continuar a denunciar o que é errado e apresentar alternativas de uma Angola inclusiva e onde todos, do político ao vendedor ambulante, devem ser tratados com igualdade e justiça social. Para MCK, conforme declara ao Rede Angola, a música exerce um papel muito importante no sentido da mudança por ser uma arte de fácil acesso e consumo.

 Quem ouve os três discos nota que as composições giram muito em torno das questões políticas. MCK é essencialmente um político?

 Se admitirmos o que nos é proposto por Aristóteles, sim. Enquanto animal social, um ser inserido no seio de uma determinada comunidade com a preocupação natural de ver o exercício de cidadania desta mesma sociedade realizada, neste termos, sim. Eu acho que o homem é um animal essencialmente político.

 Então faz política com o rap?

 

Neste sentido no qual me referi, sim. Até porque o rap é dos poucos estilos musicais onde dá para fazer com alguma naturalidade este exercício intelectual de informação e formação de consciências, as lutas das revindicações e o exercício da cidadania. Com o rap temos muitas facilidades por causa das raízes históricas do estilo, que nos permitem uma abordagem intelectual.

 E está alinhado em algum partido político em especial?

 Não. Por enquanto essa não é minha prioridade.

 Mas há intenções de futuramente vir a pertencer a um determinado partido político?

 Por enquanto não tenho pretensões políticas partidárias. Mas as minhas formações, o meu exercício enquanto activista cívico e as minhas preocupações enquanto cidadão, fazem com que eu não descarte a possibilidade de eventualmente, no futuro, abraçar um projecto político. Mas por enquanto não. Ainda acho que cada cidadão pode oferecer o seu contributo na tomada de decisões que condicionam os destinos da nação através da participação na sociedade civil e de diferentes formas.

 Mas já recebeu alguma proposta de algum partido político neste sentido?

 Sim, já recebi varias propostas de diferentes partidos, quer da situação como da oposição. Mas é uma questão de tempo. Por enquanto isso não representa propriamente uma prioridade para mim, mas como disse, no futuro é bem provável que eu venha abraçar um projecto político.

 Por enquanto dá para viver somente do rap?

 Infelizmente é muito difícil. Não exerço a música de forma profissional. Além da música trabalho como um profissional liberal, desenvolvo projectos de marketing e trabalho também como gestor de eventos.

 

 

Os carros de luxo que ostenta vêm das suas actividades enquanto um profissional liberal ou dos rendimentos da música?

 

Sou dos poucos artistas que rima sem contrato desde o primeiro álbum. Desde muito cedo lancei-me a fazer música independente e desde muito cedo pago os meus discos. Quando vou à Praça da Independência chego a vender mais de 10 mil cópias. Além disso, embora independente, lanço outros artistas através da minha produtora, a Masta K, crio vários subprodutos com a minha arte. Por exemplo, mensalmente vendemos a nossa linha de t-shirts com frases diferentes. Apesar de lançar novos álbuns a cada quatro anos, em média, todos os anos reedito os meus discos e quase sempre com perspectivas diferentes. Agora lançamos uma pulseira USB de quatro gigabytes com os meus três álbuns e sete videoclipes. Portanto, o que consigo fazer com a minha música é torná-la verdadeiramente independente, auto-suficiente e muito avançada em relação às perspectivas do mercado actuais.

 

 

Mas não respondeu directamente à minha pergunta…

 

O que deve se questionar é a proveniência lícita ou ilícita dos rendimentos. E o MCK não é só artista. Entre outras coisas que já disse que faço, também vendo carros. Se eventualmente me virem com carros de luxo, em vez de questionarem a origem, perguntem o preço, porque pode estar à venda. Tudo isso é para dizer que sou um jovem esforçado e que desde cedo sacrificou-se para conquistar a auto-suficiência. Apesar de, infelizmente, vivermos num país onde não existe muita transparência e onde as pessoas muito facilmente tornam-se ricas da noite para o dia porque roubam do erário, não é o meu caso, porque nunca trabalhei numa instituição pública.

 

 

Com um mercado cultural cada vez mais dinâmico, pelo menos no que toca a música, ainda não é possível os artistas angolanos viverem apenas do que fazem?

 

Em Angola há poucos profissionais a viverem com dignidade só com aquilo que sabem fazer. Conheço juristas que têm uma placa na porta a indicar “vende-se gelo”, há médicos que vendem sopa. Quer dizer, Angola é um mercado muito disfuncional, as pessoas normalmente lutam para terem vários rendimentos porque os salários são muito baixos se considerarmos aquilo que é o custo de vida dos angolanos. Principalmente para quem vive em Luanda, que é por simplesmente a cidade mais cara do mundo. Também é verdade que existem artistas que com algum sucesso conseguem viver somente da música, como Paulo Flores, Matias Damásio entre outros.

 

 

Mas a questão da dignidade a que se refere não depende muito do modo como os artistas aplicam os seus rendimentos?

 

É, também é verdade, até porque hoje já temos artistas que não aceitam cantar por menos de USD 3 mil. Vou dar-lhe um exemplo muito rapidamente: cantei há dez anos em três shows do Riquinho [empresário cultural], e facturei USD 3,5 mil. Com este dinheiro, comprei uma viatura Toyota Hiace e pus a fazer serviços de táxi. Mas conheço pessoas que cantaram em mais de vinte shows do Riquinho e que não têm nada na vida. Então isso depende muito da dinâmica e do exercício que as pessoas fazem com a aplicação dos rendimentos. Há artistas que actualmente cobram 15 mil dólares por um concerto como existem também outros que não têm sequer um show marcado.

 

Rapper não descarta abraçar um projecto político

Rapper não descarta abraçar um projecto político

 

Pelo menos em Luanda, e de acordo com a agenda de espectáculos da cidade, não é visto em muitos shows. Porquê?

 

Por várias razões. A primeira é pela natureza contestatória das músicas; pelo facto de vivermos numa democracia embrionária que se fecha para o pluralismo e onde as pessoas que pensam de forma diferente são quase equiparadas a criminosos, é muito difícil sermos chamados para fazer shows. Não é porque os promotores não têm interesse em convidar-nos, e sim porque existem outras questões de foro burocrático que limitam a maior exposição dos artistas declaradamente contestatórios, que eu chamo de revolucionários. Por exemplo: eu, para realizar hoje um show, tenho que passar por um conjunto de procedimentos inconstitucionais.

 

Que procedimentos?

 

A solicitação da permissão à Direcção Provincial da Cultura. Quando o 42º. artigo da constituição diz que o exercício artístico é livre e isento de censura. Quando um produtor de festas fúteis decide realizar um evento, não lhe são colocadas essas questões, mas quando se trata de um artista revolucionário, ele encontra muitas dificuldades. Por outro lado, pelo facto de não cantarmos primariamente por dinheiro, temos algumas exigências no que diz respeito à transparência. Não cantamos em qualquer show, questionamos sempre a origem dos pagamentos, não participamos em actividades político-partidárias, tanto da oposição ou da situação. Enfim, há um conjunto de restrições, por força daquilo que são os nossos princípios, valores e as convicções que defendemos.

Isso acaba por tornar a música independente mais difícil ainda…

 

Obviamente. Porque os artistas críticos são obrigados a criarem meios para promoverem as suas músicas. Mas devo-lhe dizer que, comparadamente aos anos anteriores, este ano foi o mais produtivo da minha carreira no que toca aos concertos. E se não fossem muitas destas barreiras a que me referi, poderia ter feito muito mais.

 “A minha música é um retrato fiel do dia-a-dia”

  É um filósofo de formação e nota-se uma certa profundidade no que canta. Será que é resultado desta sua formação ou das suas vivências no Chabá?

 Estou fora do bairro Chabá há cerca de dez anos. A minha música é um retrato fiel daquilo que o dia-a-dia produz, desde os momentos mais alegres aos mais tristes. Também é o resultado das experiências que recebemos dos livros, dos filmes e até mesmo da convivência diária com as outras pessoas e outros povos. Quem investiga e lê histórias facilmente consegue perceber que a nossa cultura africana tem um conjunto de valores que nos atrai a cantar.

Já foi ameaçado a deixar de cantar por Causa deste estilo de música contestatária?

Mais do que ameaças, há violações do mais humilde dos direitos, que é a vida. Houve um caso directo que foi a morte do jovem Cherokee, em 2003, no embarcadouro do Mussulo, por ter cantado uma música minha [Arsênio Sebastião Cherokee, 26, teria sido morto afogado por agentes da Unidade de Guarda Presidencial ao ser surpreendido a cantar “A Téknika, as Kausas e as Konsekuências”]. Em 2006, cheguei a ser proibido de vender discos. Em 2011, depois do lançamento do meu disco [Proibido Ouvir Isto] encontrei a minha porta arrombada. Já tive pneus de carros furados, já recebi cartas e telefonemas intimidatórios. É por todas essas experiências e privações de liberdades que hoje tenho uma coragem maior que o número de ameaças que recebo. Na música “Cadáver Andante”, faço uma abordagem de um conjunto de ameaças que recebo desde o início da carreira, porque chega uma fase da vida na qual as ameaças, se não te destroem, então tornam-te mais forte. Infelizmente muitos não percebem que este exercício musical que faço há anos não é por valores monetários, mas pela convicção de obedecer à constituição do país e fazer um serviço público para o bem da sociedade.

Há algum limite?

 

Não estabelecemos limites. Porque, mais que qualquer retorno, a grande satisfação é continuar a relatar tudo que incomoda o cidadão e fazer com que as pessoas deixem de ir tratar uma simples dor de cabeça na Namíbia e estudar em Portugal. Portanto, são revindicações que fazemos com o objectivo de exigir das nossas instituições públicas que ofereçam ao seu povo melhores condições de vida.

O caso Cherokee como é que anda? Há um processo instaurado?

 

Não tenho contacto com a família há cerca de quatro anos. Mas o caso foi encerrado por falta de testemunhas. Não houve uma parte da acusação e o processo ficou abafado, assim como os de outros cidadãos mortos por revindicarem os seus direitos, tal como o do militante da Casa-CE, Hilberto Ganga, morto por ter colado panfletos, do Mfulupinga Landu Victor, Cassule e Kamulingue e tantos outros.

 

 

Que reflexos essas mortes podem trazer para o país?

 

Para esse momento que o nosso país está a viver, de paz, de subida crescente da produção do petróleo, pelos indicadores favoráveis macro-económicos, do PIB e etc, essas mortes colocam Angola em xeque, porque mostram claramente que, apesar destas evoluções (muito por via do petróleo), no tecido social não houve esse acompanhamento. Não há paz social, não há justiça social, não há distribuição equitativa da renda, não há respeito às normas nem a valorização da pessoa como elemento-chave de qualquer nação.

 

As manifestações que os jovens vão promovendo, principalmente em Luanda, podem virar a página de todo este processo?

 

Em Angola não há manifestações. Há sim tentativas de manifestações que também são sempre abordadas, com os manifestantes espancados. Portanto, existe um conjunto de factos e argumentações políticas que mostram bem a arrogância e os crimes de quem está no poder.

No seu entender qual deve ser a saída para o fim de todas as hostilidades?

 

Se efectivamente pretendemos tornar Angola num Estado democrático onde se valoriza a vida, temos que respeitar a constituição e as leis. Se as instituições públicas, o Executivo, os tribunais e o povo respeitarem a lei, todo o resto será mais fácil, até porque a morte em Angola é condenada por lei. Angola apresenta-se internacionalmente como um Estado de direito; para isso, deve respeitar a opinião, o princípio da liberdade e a igualdade jurídica. Até porque estamos em paz e esta mesma paz deve ser construída todos os dias, não é só com o calar das armas. E a paz passa muito pela construção de uma sociedade com maior sentido de distribuição da justiça e da renda. Ou seja, o país deve ser de todos e não de um grupo de pessoas.

Acha que falta algum sentido de Estado?

 

Claramente. Se não se respeita a lei e a constituição não tem como se construir um Estado de verdade. É preciso colocar o país em primeiro lugar independentemente de sermos do Petro ou do 1º de Agosto, da UNITA, da FNLA ou do MPLA, e pensarmos que antes destas coisas todas somos angolanos. E se cada um de nós olhar Angola como uma obra em permanente construção, onde todos podem colocar uma pedra para um país mais livre, estável, mais independente e melhor, então o país muda, naturalmente.

Mas recentemente, no seu discurso sobre o Estado da Nação, o Presidente da República disse que o país está estável.

 

Esta é a visão dele, e é uma posição claramente em contradição com aquilo que é a realidade social. O Presidente da República fez um encontro com um grupo de jovens há coisa de um ano. Eu, na qualidade de jovem, tinha expectativas em ver os resultados, mas a realidade prática é que os níveis de criminalidade subiram. É esta estabilidade social a que o Presidente se refere, com o aumento da criminalidade? Quer dizer, existem um conjunto de questões por levantar. Uma coisa é a posição do Presidente da Republica e a outra coisa é a realidade.

 

 

No seu entender, em se considerando a sua posição, há então um desconhecimento ou negação da realidade de quem está no poder?

 

É mais a negação da realidade, porque todos conhecem o país real. É preciso entender que uma coisa são os discursos oficiais e a outra coisa é a realidade prática. A subida da criminalidade a que me referi não representa estabilidade em nenhuma parte do mundo. Pelo contrário, representa injustiça social. Portanto, os excluídos, os sem oportunidades, os sem formação, os sem saúde procuram forma de se afirmarem socialmente. Há o caso da África do Sul e do Brasil, onde os níveis de criminalidade são é muito elevados porque a situação social não está resolvida. Angola não foge à regra porque as rendas não são efectivamente bem distribuídas. O país não pode estar dependente daquilo que é a expectativa do Presidente da República.

Acha que há uma certa dependência?

 

Claramente.Temos o caso da constituição das autarquias locais, que está dependente da agenda pessoal do Presidente da República. Repare, nós estamos em paz desde 2002. O Presidente decidiu facultativamente realizar eleições em 2008 e depois decidiu fazer as outras em 2012. Então os cidadãos têm que esperar até que o Presidente decidir fazer as autárquicas? Claro que não. Porque ele deve por simplesmente obedecer aquilo que são os dispositivos legais.

“Não há responsabilização dos actos de muitos governantes”

 

Artista realiza actividades paralelas para sobreviver

Artista realiza actividades paralelas para sobreviver

 

Já afirmou e cantou que este é o país do Pai Banana. Depois disse que é o país do Larama [vencedor do Big Brother Angola] também numa das suas músicas. Com esta afirmação nas suas letras está a querer dizer que o país não dispõe de bons exemplos ou moldes sociais?

 

Pai Larama e o Pai Banana são muito parecidos. São gémeos. Se reparar com calma, não existem grandes referências das nossas figuras públicas associadas ao poder. Por exemplo, o Presidente da República admitiu que, depois da guerra, o grande problema de Angola era a corrupção e que se deveria criar mecanismos para o seu combate. No entanto, quase todos os anos surgem denúncias de figuras associadas ao poder a saquearem o erário para investir fora. Para um jovem comum, sem grande capacidade de análise, isso passa a ser uma referência. Recentemente saiu uma denúncia em Portugal a respeito do Bento Kangamba, que estaria envolvido num escândalo financeiro. O mesmo já tinha outras denúncias neste sentido na França. E internamente ninguém disse nada, ninguém fez nada, porque é uma pessoa pública e próxima ao Presidente da República. Portanto, essas são as nossas referências, infelizmente.

O seu diagnóstico é pessimista?

 

Vive-se um momento muito crítico e de um Estado de muito pouca responsabilização. Os escândalos financeiros que envolvem as mais altas figuras do aparelho do Estado não tiveram qualquer seguimento no país. As questões de peculato, corrupção e tráfico de influências são tratadas de forma muito leviana. Aqui a vida não é vista como um valor universal. Estamos num país onde a dignidade humana e a democracia são tidas como bens menores. Temos figuras públicas ligadas ao Estado que são ministros e o mesmo tempo empresários, mas ninguém questiona isso. Então acho que estamos a viver um problema muito forte da moral pública. Nós atravessamos um momento muito crítico de crise da moral, dos valores e principalmente de referências institucionais, que podem servir de exemplos inspiradores. Não há responsabilização dos actos de muitos governantes. Por exemplo, um pronunciamento como o do governador do Bié, que ameaça bater fisicamente nos homens da UNITA, em países normais, dava direito a uma responsabilização judicial.

 

 

Muitos vêm a solução dos problemas do país na alternância do poder político. Partilha desta visão?

 

A alternância do poder político, no meu ponto de vista, não pode ser entendida como político-partidária, porque nas sociedades como a nossa, onde é impossível pensar numa alternância por via do voto, começo a acreditar cada vez mais na alternância da população. Ou seja, mudar a mentalidade da população, fazendo um trabalho profundo de mudança de consciência e inversão desses valores. Isso seria mais importante que a luta político-partidária, que, no meu ponto de vista, é muito personalizada. Se olharmos para o funcionamento dos nossos ministérios, as leis e a constituição do país, vamos perceber que tudo recai para a figura de uma única pessoa. Por isso, defendo o futuro deste país devia estar nas mãos do povo, porque quando um povo se une qualquer Estado reúne. E quando o povo fala o governo ouve. E quando o povo se levanta o governo cai.

 

 

E o povo angolano não fala?

 

Infelizmente não. Para já, é que não tem muitos meios para falar. As manifestações têm sido uma tentativa neste sentido, mas, como já disse, os organizadores acabam torturados e detidos. Então o povo não tem espaço para manifestar publicamente as suas opiniões. Não existem espaços públicos para o exercício do diálogo. Temos por exemplo a questão do parlamento – nem sequer é transmitido o que se discute lá dentro. Quer dizer, o povo não conhece os interesses públicos discutidos na Assembleia, e o Presidente e o Executivo não respondem perante o Parlamento. Estamos numa democracia onde não há debate, só há discursos.

 Mas estamos perante um Estado no qual a constituição permite o exercício destes princípios?

 Formalmente. Porque na prática o nosso país vive na contramão da democracia. As democracias têm debates e responsabilização, mas a nossa não tem. Os jovens não são respeitados nem tem decisão sobre as grandes preocupações do país. A maior parte da população é constituída maioritariamente por jovens e crianças. Mas quem conduz os destinos deste mesmo país são pessoas acima dos 70 anos de idade. Nós vivemos dependente de decisões de pessoas que têm perspectivas e visões completamente diferentes das nossas. Quem tem 70 anos não tem as mesmas preocupações de quem tem 20 ou 30 anos de idade. Estamos totalmente desencontrados. E é por isso que os jovens em Angola não decidem nada, são apenas recipientes de políticas. Quando deviam estar na decisão do seu futuro.

 Ao meio de tudo isso, como avalia as capacidades dos principais partidos da oposição?

 Por um lado são asfixiados, têm pouco espaço político de intervenção. Mas por outro lado sinto também a falta de alguma ousadia, criatividade e um maior aproveitamento racional dos pequenos espaços políticos.

Existe alguma voz jovem na política que lhe desperte interesse?

 

Na política propriamente não. Mas na sociedade civil eu posso apontar alguns nomes que respeito muito e admiro. Só para dar exemplos: Luaty Beirão, Rafael Marques, Lúcia Silveira, entre outros. Existe um conjunto de jovens que despertam algum interesse.

 

O rapper Kid MC, que afastou-se da carreira por motivos de depressão, recentemente revelou ser membro da JMPLA. Acha possível que o rap, um estilo de contestação, consiga conviver com uma adesão ao partido no poder?

 

Os músicos antes de serem músicos são pessoas. E como pessoas tem as suas convicções, tanto do filosófico, religioso ou político. A música não impede qualquer artista de abraçar um determinado projecto político. Aliás, temos hoje rappers na lusofonia que fazem rap de campanha político-partidária. No Brasil, por exemplo, a maior parte dos rappers são do PT [Partido dos Trabalhadores, da presidente Dilma Rousseff]. Nada corta esta possibilidade. O importante é saber diferenciar quando é o momento do partido e quando é o momento da arte. Porque a arte não tem partido, deve ser livre.

“O rap é um estilo nómada”

 

Hoje em dia o estilo rap está recheado de muitas cópias, mas sente-se nas suas músicas uma certa identidade própria que vem desde o seu primeiro disco. Quais são as suas bases?

 

O meu exercício musical acontece de forma natural. Os rappers que têm abordagens mais fúteis ou mais festivas são o reflexo do que eles são enquanto pessoas. A minha música reflecte os meus valores, educação, princípios e sobretudo aquilo que eu quero e ambiciono enquanto cidadão. E no rap encontra-se sempre essa diversidade musical, umas mais sérias e outras mais fúteis. E não é só em Angola que é assim, noutros mundos também acontece isso. Por isso é que o rap tem alas e os ouvintes têm a liberdade de escolherem aquilo com que mais se identificam.

 Alguns dizem que a música rap está a morrer. Comunga desta opinião?

Não é o meu caso e nunca faria essa apreciação. Aqui em Angola, por exemplo, nos dois últimos anos o rap deu um salto muito considerável. Hoje em dia é muito difícil vender discos na Praça da Independência, mas os rappers mais populares têm enchentes fortes. Yannick Afroman foi o único rapper que lotou o Estádio dos Coqueiros numa fase em que se decretava a morte do estilo. O Kid MC encheu e lotou o Pavilhão da Cidadela e eu próprio lotei o Atlântico e outras salas de shows. Então como é que as pessoas vêm dizer que o rap está a morrer? Parece-me haver aqui alguma contrariedade.

 MCK discorda da decadência do rap | DR

MCK discorda da decadência do rap | DR

A questão da fuga de certos rappers para outros estilos musicais empobrece ainda mais o estilo?

 

As fugas que vão acontecendo são processos naturais porque as pessoas têm a liberdade de escolherem o que lhes convém. O rap é um estilo que nasce com raiz de fusão. É um estilo nómada. Nasce de pequenos estratos de outros estilos musicais. Para a geração jovem que faz música hoje, o rap é o estilo que mais a influenciou. O Heavy-C, que é um do maiores compositores e produtores de kizomba, saiu do rap. O Bruno M, um dos maiores e mais conceituados kuduristas, o Matias Damásio, o Konde, o Cristo, Punidor, todos esses foram rappers.

O que acha da política do Ministério da Cultura?

 

Muito deficitária. A maior parte da arte boa que se faz nesse país é de forma independente. Temos um ministério muito virado para o apoio das actividades e projectos que interessam o partido no poder.

Qual a sua opinião sobre o Fenacult?

 

A nível de iniciativa foi boa, mas pecou porque não foi plural e por isso é que teve maus resultados.

 

Como é que surgiu a ideia de lançar a linha de preservativos Bom Peru?

 

A ideia do preservativo Bom Peru é inspirada pelo quadro crítico que a África Subsaariana vive, do número de pessoas infectadas e afectadas. Afectada, porque hoje em dia o problema do HIV/SIDA não se restringe aos seropositivos. Esta doença está criar uma geração de órfãos pelo continente. Há filhos que estão a nascer e sabem claramente que vão perder os pais mais cedo. Isto torna o nosso continente mais improdutivo. A SIDA é uma doença muito associada à falta de informação. Ou seja, quanto menos informação as pessoas tiverem mais facilidade tem de contrair.

 

 

Os factores culturais também são muito determinantes?

 

Sim. Há um conjunto de factores culturais que estimulam a propagação da doença. Por exemplo, a poligamia, que é valor da cultura africana, mas é um autêntico “contravalor”, que não cabe nos novos tempos. Então o Bom Peru é a nossa participação enquanto activistas cívicos no combate ao SIDA, que acaba por ser um atentado a força produtiva do continente, os jovens.

 

 

Como está a distribuição?

 

Até agora colocamos mais de dez mil preservativos à disposição do público. Como são de carácter gratuito, o que a gente faz é tornar os preservativos como ingressos ou brindes nas nossas actividades. Também queríamos doar às farmácias, mas nada nos garante que elas não venham vender, até porque têm uma qualidade excelente.

 “O nosso país vive na contramão da democracia” - Rede Angola