Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


15-12-2014

Tortura é crime e nada a justifica Carlos Fino


O relatório do Senado sobre o programa de detenções e interrogatórios da CIA, divulgado a semana finda em Washington, dá conta de um conjunto de brutalidades contra os detidos verdadeiramente atrozes.

Dois mil anos de ensino cristão sobre  a necessidade de respeitar sempre e em todas as circunstâncias a dignidade humana não foram suficientes para evitar a prática de abomináveis atos de violência contra prisioneiros cometidos entre 2001 e 2009 pela polícia secreta de um dos países que mais se orgulham das suas raízes cristãs – os  Estados Unidos da América.

Embora nem tudo tenha sido revelado (só foi publicada uma parte censurada das mais de 6700 páginas), o relatório do Senado sobre o programa de detenções e interrogatórios da CIA, divulgado a semana finda em Washington, dá conta de um conjunto de brutalidades contra os detidos verdadeiramente atrozes: privação de sono de até 180 horas, quebra de braços e pernas, simulação de afogamento, roleta russa, alimentação retal pela força, espancamentos, ameaças de morte e de violação da mulher e dos filhos... Brutalidades que, por mais sofismas que se queiram usar, só têm um nome – tortura.

Este é o comportamento da polícia nas ditaduras. Conhecêmo-lo bem em Portugal e no Brasil. Mas não é, de forma nenhuma, o que se espera de um Estado de direito democrático. E muito menos de um país que se vê a si próprio como "a nação indispensável",  exemplo que todos deveriam seguir e que a todos julga pelo grau de respeito pelos direitos humanos.

Embora de muita coisa já se suspeitasse, sabe-se agora de ciência certa, graças à tenacidade e perseverança da comissão liderada pela senadora democrata Dianne Feinstein, que a CIA não só recorreu a este tipo de violações de uma forma muito mais extensa do que se pensava, como induziu repetidamente em erro o Congresso, a Casa Branca e os media sobre a suposta eficácia desses métodos, que sempre procurou justificar afirmando, ainda hoje, que "ajudam a salvar vidas".

Afinal, sabe-se agora – e esta é certamente uma das grandes conclusões do relatório – que a CIA não conseguiu pela violência nenhuma informação que não tivesse obtido já por outros meios, o que questiona toda a suposta eficácia da tortura e deslegitima ainda mais a sua prática.

Porque recorreram então os serviços secretos a esses métodos?

Aparentemente, isto só foi possível no contexto político e psicológico criado no país na sequência dos atentados contra as torres gémeas, em Setembro de 2001, o maior ataque ocorrido no seu território em toda a história da América.

A reação emocional que se seguiu, com a declaração da "Guerra ao Terror" proclamada pelo então presidente George W. Bush, e a probabilidade de novos ataques, exigindo respostas urgentes dos serviços de segurança, acabaram por criar um clima de intolerância (nas palavras de Bush, "quem não está conosco está contra nós"), em que muitos estavam dispostos a sacrificar direitos e liberdades por segurança.

Ainda assim, as ações desencadeadas pela CIA, nas quais colaboraram 54 países, envolvendo detenções e transporte ilegal de suspeitos, criação de bases secretas de detenção e métodos violentos de interrogatório, ultrapassaram tudo o que seria razoável esperar.

Não é a primeira vez que nos EUA relatórios oficiais revêem e condenam práticas e políticas oficiais anteriores. Esse é um modus faciendi corrente e uma das virtudes da democracia americana, que assim permanentemente se regenera e recredibiliza. Poucos são aliás os países capazes de assim se auto-examinarem e exporem o seu lado negro.

Entretanto, dada a sensibilidade do tema – a tortura, cuja prática é considerada crime e internacionalmente condenada, em convenções de que os próprios EUA são signatários, este relatório assume particular relevância.

Ele é parte de uma luta que está longe de ter terminado em todo o mundo, incluindo nos próprios EUA, pela crescente afirmação dos princípios humanistas, em que o respeito pelo outro é um valor essencial. Uma caminhada encetada há mais de dois mil anos, em que todos os avanços são lentos, frágeis e quase sempre precários.

Agora, falta fechar Guantánamo.

Veja aqui o que foi publicado:

http://www.intelligence.senate.gov/study2014/sscistudy1.pdf

E ainda, sobre este tema:

http://www.businessinsider.com/us-military-should-be-mad-over-cia-torture-report-2014-12

http://globaleconomicanalysis.blogspot.com.br/2014/12/cia-torture-reports-frozen-to-death.html

* Carlos Fino, jornalista português, foi enviado especial e correspondente internacional da RTP - televisão pública portuguesa - em Moscou, Bruxelas e Washington, e correspondente de guerra em diversos conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão,  Albânia, Oriente Médio e Iraque.  Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012), cidade onde atualmente reside.

 

http://www.portugaldigital.com.br/opiniao/ver/20090961-tortura-e-crime-e-nada-a-justifica?utm_source=e-goi&utm_medium=email&utm_term=Newsletter+Portugal+Digital&utm_campaign=Portugal+Digital