Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


02-06-2016

O Terramoto de 1755 em Mazagão


 

Baluarte do Anjo, Mazagão

Pescadores junto ao Baluarte do Anjo em Mazagão

O Terramoto de 1755 foi um acontecimento terrível, de proporções inimagináveis, cujos danos se fizeram sentir em diversas partes do globo, conforme as descrições da época atestam, estimando-se que tenham morrido entre 60.000 e 100.000 pessoas, segundo estimativas apontadas por Maria-Ana Baptista. (OMIRA, BAPTISTA, MELLAS, LEONE, MESCHINET DE RICHMOND, ZOURARAH e CHEREL, 2012, pág. 61)

Os seus efeitos no Golfo de Cádis foram catastróficos, sobretudo no Sul de Portugal, pela proximidade do seu epicentro ao Cabo de S. Vicente, e em Lisboa, pela dimensão e população que a cidade tinha, mas em Marrocos teve também consequências desastrosas, não só no litoral, bastante afectado pelo tsunami gerado, mas inclusivamente no interior do país, onde as ondas sísmicas provocaram importantes destruições.

Mazagão, a única praça-forte portuguesa na época, não escapou aos seus efeitos, e o sismo influenciou inclusivamente a decisão da sua evacuação poucos anos depois.

Lagos

A frente de rio de Lagos

O Terramoto de 1755 e subsequente tsunami foi um dos maiores sismos alguma vez sentidos.

Segundo o geofísico João Barros Fonseca, “o terramoto de 1755 foi sentido na Madeira, nos Açores, nas Canárias e em Cabo Verde”. E acrescenta que “há igualmente um número significativo de relatos de supostos efeitos das ondas sísmicas sobre nascentes e fontes em locais distantes de milhares de quilómetros, que motivaram debates científicos sobre uma eventual relação causa-efeito com o terramoto de Lisboa”. (FONSECA, 2004, pág. 59-61)

O sismólogo marroquino Taj-Eddine Cherkaoui vai mais longe:

“A sua potência foi tal que sacudiu metade do globo: estima-se que a superfície afectada foi de 35 milhões de Km2, um hemisfério inteiro. O abalo foi sentido até à Alemanha e Países Baixos ao Norte, e até à Tunísia a Leste (…) Foi-lhe atribuído, posteriormente, uma magnitude próxima de 9 (…) equivalente à explosão de 200 milhões de toneladas de TNT”. (CHERKAOUI, 1987, pág.65)

Segundo este investigador, a intensidade XI sentida no Sul de Portugal e em Lisboa, foi de IX em Meknés e Fez, VIII em Marraquexe e Salé e VII em Tànger, Arzila, Larache, Rabat, El Jadida, Essaouira e Agadir. O número de mortos estimado no país foi de 60.000, e “os danos foram imensos”. (CHERKAOUI, 1987, pág.65)

Samira Mellas refere que “o sismo e o tsunami do 1º de Novembro de 1755 constituem, até hoje, o acontecimento natural mais forte, mais impressionante e mais destruidor que a Europa conheceu”.(MELLAS, 2013, pág. 41)

Vista aérea de Meknés

Vista aérea de Meknés

Segundo Cherkaoui, em Marrocos o Terramoto de 1755 ficou conhecido pelo nome de Terramoto de Meknassa-Azaytouna, pelos efeitos arrasadores que teve na cidade de Meknés.

“Sobre Meknés, o grande historiador marroquino En Nasiri escreveu no Kitab El Istiqsa: Em 1169 da Hégira (1755) ocorreu o grande tremor de terra em Marrocos que destruiu quase completamente Meknés e Zerhoun e fez um número incalculável de mortos. Só entre os escravos, morreram cerca de 5.000 pessoas”. (CHERKAOUI, 1987, pág.66)

Segundo também o mesmo autor a réplica ocorrida no dia 18 de Novembro tornou a cidade inabitável. “A mesquita da Kasbah foi arrasada e morreram perto de 10.000 pessoas”.(CHERKAOUI, 1987, pág.66)

Em Fez os habitantes demoliram as suas próprias casas com medo de morrerem sob os seus escombros, de acordo com a obra Nashr El Mathani de El Qadri. Grande parte dos edifícios públicos ruíram, particularmente a Grande Mesquita e morreram 3.000 pessoas. (CHERKAOUI, 1987, pág.66)

Sobre os efeitos do tsunami em Salé, refere En Nasari, citado por Cherkaoui:

“O mar recuou numa grande extensão. Muita gente foi observar esse fenómeno, quando repentinamente o mar voltou brutalmente sobre a costa e ultrapassou em muito o seu limite habitual. Todos os que estavam fora da cidade desse lado foram engolidos.” (CHERKAOUI, 1987, pág.66)

Bab El Mansour, Meknés

A Bab El Mansour em Meknés

Em relação aos danos causados em Marrocos, a investigadora Agnés Levret fez um estudo exaustivo com base nos relatos de vários autores, tanto europeus como árabes, baseando a recolha de textos europeus no trabalho de J. Vogt e de textos árabes no trabalho de Touria El Mrabet, procurando determinar da forma mais objectiva possível os efeitos do sismo e tsunami associado, tendo em conta que as descrições de cada um não são propriamente coincidentes.

Das fontes europeias destaca-se a carta de um padre franciscano do Convento Real de Meknés, que testemunhou os danos sofridos nessa cidade, publicada em várias edições e “é interessante notar que certas descrições e exageros são introduzidos à medida que as várias edições vão sendo publicadas, daí a importância de um regresso ao documento original”. (LEVRET, 1988, pág. 4) Outro documento é uma carta existente nos arquivos de Gibraltar, supostamente da autoria de um mercador estabelecido em Rabat, escrita em data posterior ao evento, contendo inúmeras contradições com o texto do padre franciscano. Quanto aos textos árabes, baseiam-se sobretudos nas obras de El Qadiri, Al Morabit e Al Nasiri.

Em todos os textos são referenciados dois abalos, um no dia 1 de Novembro e outro no dia 18 de Novembro, existindo fontes que divergem na data do segundo abalo, referenciando-o ao dia 27 de Novembro.

Moulay Idriss

Moulay Idriss, na região do Zerhoun

Relativamente ao abalo do 1º de Novembro, as fontes europeias e árabes são completamente divergentes em quanto aos danos sofridos em Meknés e Fez. Enquanto os europeus falam da destruição generalizada de importantes edifícios e da morte de muitas pessoas, os autores árabes minimizam os efeitos, reduzindo-os a estragos de pouca monta e a um número escasso de mortos. Já no que refere aos danos provocados no Zerhoun, com a destruição de uma aldeia por um deslizamento de terras, as fontes são coincidentes. As descrições da região Sul de Marrocos, Marraquexe e Chichaoua, são pouco precisas em ambas as fontes e os danos na costa Atlântica são descritos sobretudo pelos autores europeus, referindo que “os estragos foram fortes em toda a costa Atlântica de Marrocos, onde o efeito das ondas sísmicas se combinou com a destruição causada pelo tsunami”. (LEVRET, 1988, pág. 5-8)

Um dos autores que descreve o desastre do Zerhoun, a destruição causada numa aldeia situada a oito léguas de Meknés, foi Francisco Luís Pereira de Sousa citado por João Barros Fonseca:

“…tragou uma aldeia, com todas as suas choças, gentes, cavalos, camelos, mulas, vacas e mais gado…cinco mil pessoas…e seis mil soldados de cavalo, que estavam aquartelados, sem que de uns nem outros escapasse algum”. Há também notícia de deslizamentos de terras na cordilheira do Atlas. (FONSECA, 2004, pág. 59)

Bab Dekaken 2

Mulheres junto à Bab Dekaken em Fez

Relativamente aos abalos de 18 e de 27 de Novembro, as fontes europeias e árabes são totalmente divergentes, mas apenas na data, já que ambas referem a destruição quase total de Meknés e Fez. Para os europeus ocorreu no dia 18 e para os árabes no dia 27. Segundo Levret, a hipótese mais plausível para esta divergência é a de que os europeus associaram os acontecimentos de Meknés à réplica que no dia 18 que se fez sentir em Portugal e na costa Atlântica de Marrocos, enquanto os autores árabes relatam um outro sismo de carácter localizado, na região de Meknés-Fez, na altura já abandonada pelos religiosos cristãos. (LEVRET, 1988, pág. 9)

“A hipótese de dois abalos com origem diferente parece justificável. Uma no dia 18 de Novembro seguida de outras seria uma réplica do sismo do 1º de Novembro e teria origem no Banco Gorringe-Ampère (…) Outra no dia 27 de Novembro com epicentro localizado perto de Meknés, teria arrasado a cidade”. (LEVRET, 1988, pág. 11)

Assim, a designação de terramoto de Meknassa-Azaytouna que Afoulous atribui ao terramoto do 1º de Novembro de 1755 não é correcta, referindo-se ao sismo do dia 27 do mesmo mês ocorrido em Meknés.

Samira Mellas refere a propósito das discrepâncias entre as datas e os danos dos vários abalos ocorridos em Novembro de 1755:

“Por um lado a confusão feita em numerosas descrições entre o sismo tsunamigénico do 1º de Novembro de 1755 e um sismo rifenho dos dias 18-19 (segundo os documentos europeus) ou 27-28 de novembro (segundo os documentos marroquinos) do mesmo ano, e por outro lado a sobrestimação dos efeitos do tsunami nas costas marroquinas: a confusão entre os dois sismos descredibilizou os testemunhos ou interpretações moderadas sobre a inundação, e favoreceu uma interpretação “maximalista” dos dados disponíveis, sobrestimação transmitida de seguida ao longo dos séculos na literatura, sendo necessário um regresso crítico às fontes iniciais”. (MELLAS, 2013, pág. 41-42)

Torre Hassan, Rabat

A Torre Hassan em Rabat

Um aspecto que ainda hoje é objecto de discussão é o da real extensão dos danos no património, como é o exemplo da Torre Hassan em Rabat, que o cronista Mohammed Al Fassi afirma que “a parte superior em falta na Mesquita Hassan foi destruída pelo violento tremor de terra, que devastou Lisboa em Novembro de 1755”. Neste caso concreto, a afirmação é duvidosa, não só porque a parte da torre que subsiste não indicia grandes danos, mas também porque na cronica de Ibn Abi Zara escrita em 1197 o autor afirma que “neste ano foi construída em Rabat El-Fath a mesquita e a Torre Hassan, que nunca foi acabada”. (EL MRABET, LEVRET, RAMDANI, e TADILI, 1989, pág. 7)

O número de vítimas provocado em Marrocos pelo terramoto foi minimizado pelo facto de as grandes cidades se situarem na sua grande maioria no interior do território e não na costa, escapando assim aos terríveis efeitos do tsunami, conforme refere Said Afoulous:

“É verdade que na época, as grandes cidades com forte concentração humana estavam sobretudo situadas no interior das terras como Fez e Marraquexe. O sultão Sidi Mohammed Ben Abdellah, que reinou de 1757 a 1790, não tinha ainda tomado o poder para lançar os grandes trabalhos de instalação de bastiões para as principais cidades marítimas marroquinas”. (AFOULOUS, 2014)

Essaouira, a bem desenhada

Essaouira, a “bem desenhada”

Com efeito, seria a partir do reinado deste sultão, o grande responsável pela reconstrução de Marrocos no pós 1755, que foi implementada uma política de desenvolvimento comercial baseada na actividade portuária, tendo então as cidades costeiras tido um grande desenvolvimento, sendo fortemente fortificadas e preparadas para o comércio marítimo, e onde se instalaram importantes comunidades de comerciantes estrangeiros, nomeadamente portugueses e genoveses, como foi o caso de Essaouira e Casablanca.

Touria El-Mrabet Zeroual é uma investigadora do Centre National de Recherche Cientifique de Rabat que tem dedicado grande parte da sua actividade ao estudo da sismicidade histórica de Marrocos, enquanto instrumento para o planeamento de equipamentos e infraestruturas.

O trabalho de El-Mrabet é de importância fundamental, compilando os textos e descrições da época, que indicam que se “nota um grande número de vítimas nos portos marroquinos do Atlântico, contrariamente aos portos do Mediterrâneo. Em Ceuta, por exemplo, nota-se que o tremor de terra, apesar da vaga de terror causada aos habitantes, não teve o mesmo efeito devastador que noutras cidades das costas atlânticas”. (AFOULOUS, 2014)

No entanto, sabemos que muitas descrições da época encerram grande subjectividade, exagero e dramatismo, e muitas vezes são escritas “à posteriori”, por pessoas que “ouviram contar” o acontecimento, pelo que deverão sempre ser avaliadas, situação que estudos mais recentes procuram fazer.

 Rabat

A foz do Rio Bouregreg em Rabat

Apesar disso, nos elementos compilados por Touria El-Mrabet Zeroual são notórias as destruições provocadas pelo sismo, como em Tânger, onde “as vagas de alturas espectaculares tocaram as muralhas da cidade de forma inédita”, em Rabat, onde “as fontes falam de importantes perdas de vidas humanas e de danos materiais importantes. Vagas gigantescas invadiram brutalmente a cidade até ao interior das lojas e habitações. As águas inundaram a terra numa extensão de cerca de quatro quilómetros inundando tudo o que puderam encontrar na sua passagem, levando consigo três embarcações que transportavam perto de duzentos passageiros marroquinos que atravessavam o Rio Bouregreg. Todos morreram afogados”. Em relação a Rabat, as fontes ocidentais consideram que existem exageros “nas estimativas dos danos em perdas de vidas humanas, que asseguram que os grandes edifícios da cidade colapsaram e que a maior parte dos habitantes morreram”. Em Safi “o mar invadiu a cidade até à mesquita situada a dois quilómetros da costa (…) várias caravanas a caminho de diversos destinos foram vítimas seja das vagas seja de grandes fissuras do solo onde homens e animais foram enterrados vivos. Fala-se também de muitas pessoas que se tinham refugiado no cimo de colinas, e que foram tragadas pelos deslizamentos de terras provocados pelas vagas”. (AFOULOUS, 2014)

Imagem 99 Mazagão

Vista aérea da Cidadela de Mazagão

Quanto a Mazagão, durante o século XVIII foi sujeita a inúmeras tentativas de conquista, sendo referenciados importantes ataques nos anos de 1751, 1752, 1753, 1754, 1756, 1760, 1763 e 1769, todos eles falhados, mas que mantiveram a praça num constante sobressalto e sujeita a um bloqueio permanente, conforme relatos de Simão Correia Mesquita citado por José Manuel Azevedo e Silva. (SILVA, 2004, pág. 168)

Sobre os efeitos do Terramoto de 1755 escreveu Simão Correia Mesquita no ano seguinte:

“Ninguém já ignora o lastimoso efeito, e deplorável estrago, que a Praça de Mazagão experimentou no primeiro de Novembro do ano passado, aonde desde as nove horas e meia, até às nove e três quartos tremeu a terra com ímpeto tão forte, que se abriu em vários sítios, arruinando-se todas as casas, e desamparando todos suas habitações, sendo a confusão igual ao estrago”. (SILVA, 2004, pág. 169)

Sobre Mazagão, o Kitab El Istiqsa refere que “as águas do oceano elevaram-se acima da muralha de El Jadida e espraiaram-se pela cidade. Um grande número de peixes ficaram na cidade quando o mar voltou aos seus limites habituais; o mar inundou também os terrenos de pastagem e de cultivo, bem como os redutos, que arrasou completamente. Os barcos e as canoas do porto foram quase todos destruídos”. (CHERKAOUI, 1987, pág.66)

O Baluarte do Anjo visto do mar

O Baluarte do Anjo em Mazagão

Agnés Levret refere duas fontes portuguesas “que relatam os seus efeitos com apreciações diferentes sobre a amplitude dos danos.” Um anónimo que refere o “estado de ruína e alguns feridos”, o outro, o cronista Luiz Maria do Couto, “descreve edifícios que se danificam, mas que não colapsam, provocando a fuga dos habitantes”. (LEVRET, 1988, pág. 8)

Mas é a descrição do efeito do tsunami em Mazagão de Francisco Luís Pereira de Sousa, citado por João Barros Fonseca, que nos dá uma imagem mais esclarecedora da forma como a massa de água entrou na cidadela, referida numa “curiosa carta proveniente de Mazagão (El Jadida)”:

“…o mar com um movimento horroroso, subindo pelas rochas e arrombando os portos, entrou pelo terreiro da Praça, onde quando se retirou deixou muitos peixes…O alcaide-mor desta Praça, que o mar arrebatou e levou consigo…o tornou a meter vivo dentro da Praça por um postigo. Administraram-se-lhe logo os sacramentos, mas dentro de oito dias, depois de haver vomitado areia, búzios, conchinhas e algum sangue pisado, convalesceu por mercê de Deus”. (FONSECA, 2004, pág. 69)

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A calheta de Mazagão com as Portas do Mar e da Ribeira entaipadas

Conclusão imediata desta descrição _ sabendo-se que o arco da Porta do Mar se encontrava entaipado na altura e o tsunami “entrou pelo terreiro da Praça”, então o tsunami entrou pela Porta da Vila, pelo lado de terra, que destruiu, e não pelo lado do mar, e, consequentemente, a onda teve altura inferior a 8.00 metros, ou seja, inferior à altura da muralha. O efeito do tsunami não pode assim ter sido de grande destruição, já que constituiu mais uma inundação “indirecta”, resultado de um efeito de entrada de água rodeando a muralha, que o abatimento de uma onda.

A descrição do Kitab El Istiqsa citada por Cherkaoui não parece assim de grande credibilidade, ao afirmar que “as águas do oceano elevaram-se acima da muralha de El Jadida”. Não nos podemos abstrair do facto de Mazagão se tratar de uma praça ocupada pelo inimigo português, e que seria desejável apresentá-la como bastante enfraquecida por forma a incentivar a sua conquista, para além do já referido carácter subjectivo e exagerado que muitas descrições da época apresentam.

A descrição do tsunami em Mazagão por um comerciante marselhês é prova desse exagero, ao afirmar que as vagas atingiram a altura de 57 pés (cerca de 17.00 metros), ou seja, o dobro da altura da muralha.

Calheta

A calheta de Mazagão com a Porta do Mar já desentaipada

Samira Mellas apresenta uma descrição existente na Biblioteca Nacional de Lisboa, publicada por Maria-Ana Baptista, que é comentada por Leone, realçando que os danos nos edifícios e ao nível de perdas humanas foram reduzidos, mas sobrestimando a altura das 3 vagas do tsunami, referidas como tendo 24 metros, que, a ser real provocariam estragos elevadíssimos. (MELLAS, 2013, pág. 47)

Leone acrescenta que “são os religiosos que escrevem e que aquilo que se reveste de maior importância aos seus olhos são os danos nos bens da Igreja. O sismo do 1º de Novembro tendo lugar no dia de Todos os Santos é explicitamente apresentado como um castigo divino”. Mas Leone vai mais longe ao afirmar que no documente é clara a mensagem que Deus castiga os cristãos pelos seus pecados, mas castiga sobretudo os judeus e os mouros porque “Deus prefere os cristãos aos mouros infiéis”. Estas afirmações têm um caracter essencialmente político e manipulador, apoiando o papel evangelizador da Igreja em Marrocos através do medo. (MELLAS, 2013, pág. 49)

Num outro texto de Fernando Pereira Leite de Sousa fica claro que o tsunami envolveu a cidadela mas não ultrapassou a altura da muralha, referindo que morreram entre 0 e 3 portugueses. O texto é também tendencioso e pouco credível, afirmando que morreram muitos mouros, ao mesmo tempo que o Governador José Leite de Sousa é referido como “animado de um espírito de cavaleiro católico, acorrendo de imediato para retirar o Santíssimo Sacramento da Igreja para o colocar num local mais alto e mais seguro”. (MELLAS, 2013, pág. 54)

Artilheiro no Baluarte do Anjo

Artilheiro no Baluarte do Anjo em Mazagão

Aliás o aspecto religioso patente nas descrições de um modo geral, e não só nas fontes cristãs/europeias, é um traço dominante, que dificulta o estabelecimento objectivo dos danos, sobretudo no número de mortos, normalmente divididos entre cristãos, judeus e mouros, e com grandes diferenças conforme a origem do relato. (EL MRABET, LEVRET, RAMDANI, e TADILI, 1989, pág. 6)

A generalidade dos autores actuais questionam a credibilidade das descrições da época, defendendo “que o impacto do tsunami de 1755 nas costas marroquinas foi muito mais fraco que o que certos testemunhos descrevem”. (MELLAS, LEONE, OMIRA, GHERARDI, BAPTISTA, ZOURARAH, PÉROCHE e LAGAHÉ, 2012, pág. 119-139)

tempo de trajecto em minutos e altura máxima para vagas para um tsunami tipo 1755 MELLAS 2012

Tempo de trajecto em minutos e altura máxima para vagas para um tsunami idêntico ao de 1755 na costa Atlântica de Marrocos (fonte MELLAS, 2013, pág. 99)

Segundo esses estudos, os valores máximos para a altura de um tsunami de magnitude idêntica ao gerado em 1755, considerando que o valor máximo depende da localização da fonte (epicentro) e de condições como a situação da maré nesse momento, variam entre os 6.00 e os 9.00 metros para a cidade de El Jadida, muito longe dos 14.00 a 24.00 metros apontados em muitas das descrições da época. (MELLAS, LEONE, OMIRA, GHERARDI, BAPTISTA, ZOURARAH, PÉROCHE e LAGAHÉ, 2012, pág. 119-139)

No estudo “The November, 1st 1755 Tsunami in Morocco: Can Numerical Modeling Clarify the Uncertainities of Historical Reports?” são comparados os efeitos de tsunami em Mazagão segundo a fontes da época com simulações computorizadas e as conclusões confirmam a sobrestimação e exageros das fontes e estabelecem um cenário provável para a ocorrência actual de um sismo com características semelhantes. (OMIRA, BAPTISTA, MELLAS, LEONE, MESCHINET DE RICHMOND, ZOURARAH e CHEREL, 2012, obra citada)

Previsão da altura máxima das vagas na costa de El Jadida (Mazagão) para um cenário de magnitude de 8.6 Mw OMIRA 2012

Previsão da altura máxima das vagas na costa de El Jadida (Mazagão) para um cenário de magnitude de 8.6 Mw (fonte OMIRA, BAPTISTA, MELLAS, LEONE, MESCHINET DE RICHMOND, ZOURARAH e CHEREL, 2012, pág. 69)

A conclusão principal é que “a onda máxima computorizada atinge uma altura de 6 metros para um cenário de magnitude 8.6 Mw e demonstra uma grande discrepância com os documentos históricos (~24.6 metros), utilizando-se um valor de deslize de 10 metros. Mesmo que acreditemos em alguns relatórios que indicam a ultrapassagem das muralhas da cidadela este valor seria descartado, já que a sua altura é de cerca de 11 metros (…) mesmo para o caso extremo de um terramoto de magnitude de 9.0 Mw as simulações numéricas não explicam com razoabilidade as alturas das vagas descritas na costa de El-Jadida”. (OMIRA, BAPTISTA, MELLAS, LEONE, MESCHINET DE RICHMOND, ZOURARAH e CHEREL, 2012, pág. 73)

Inundação máxima para El Jadida para um cenário de sismo com magnitude 8.6 Mw OMIRA 2012

Inundação máxima para El Jadida para um cenário de sismo com magnitude 8.6 Mw (fonte OMIRA, BAPTISTA, MELLAS, LEONE, MESCHINET DE RICHMOND, ZOURARAH e CHEREL, 2012, pág. 70)

Como conclusão geral, diremos que os efeitos do terramoto de 1755 em Mazagão se poderão caracterizar da seguinte forma, apesar do exagero que a generalidade das descrições da época encerra, pelos motivos já apontados anteriormente:

Verificamos que a maioria das habitações de Mazagão sofreu danos com o terramoto, mas a fortificação permaneceu intacta, resistindo aos ataques que se seguiram. O tsunami inundou a cidadela pelo lado de terra, através da porta do mar, não tendo provocado estragos ao nível do impacto das suas três vagas, já se tratou de uma inundação indirecta.

No entanto, os efeitos do terramoto e o consequente custo da reconstrução da cidade pesaram com certeza na decisão de, passados 14 anos, D. José ter ordenado a sua evacuação. O investimento necessário para a sua recuperação não se justificava, já que Mazagão constituía desde há bastante tempo um pesado e inútil encargo para Portugal.

O pano Sul da muralha visto do Baluarte do Anjo

A muralha e o fosso da Cidadela de Mazagão

Bibliografia:

AFOULOUS, Said. “Les grands séismes et tsunamis qui ont touché le Maroc: Le 1er novembre 1755 et le 28 février 1969, deux dates marquantes”. L’Opinion.ma. 2014

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EL-MRABET ZEROUAL, Touria. Entrevista ao L’Opinion.ma realizada por Said Afoulous. 2014

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OMIRA, R; BAPTISTA, M. A; LEONE, F; MATIAS, L; MELLAS, S; ZOURARAH, B; MIRANDA, J. M; CARRILHO, F e CHEREL, J-P. “Perfomance of coastal sea-defense infrastructure ar El Jadida (Morocco) against tsunami threat: lessons learned from the Japanese 11 March 2011 tsunami”.Natural Hazards and Earth Sciences. 2013

OMIRA, R; BAPTISTA, M. A; MELLAS, S; LEONE, F; MESCHINET DE RICHMOND, N; ZOURARAH, B e CHEREL, J-P. “Tsunami – Analysis of a Hazard – From Physical Interpretation to Human Impact”.Cap. 4, “The November, 1st, 1755 Tsunami in Morocco: Can Numerical Modeling Clarify the Uncertainities of Historical Reports?”. INTECH, 2012

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