Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


23-04-2015

O Inimigo Comum Aline Frazão


ALINE FRAZÃO

O Inimigo Comum

Aline Frazão,cantora e compositora


 

23.04.2015  


 

Quando a colheita é abundante e os campos bebem a dose certa de chuva e de sol, quando a nação prospera e escala a passos duplos a orgulhosa escadaria dos indicadores económicos, quando os pratos de sopa quase que transbordam e a água não desaparece das torneiras, quando as algibeiras nos pesam sobre as pernas e a palavra “necessidade” se transforma numa ficção distante, é durante essa rara primavera de abundância que os amigos nos enchem a casa. Há lugar para todos, até para os amigos dos amigos dos amigos.

As relações despem os mantos escuros. As portas ficam abertas, a chave na fechadura. É tempo de convidar, de elogiar o ócio e de preencher as horas morenas da contemplação. A “diferença” passa a ser “curiosidade”, a “variedade” uma riqueza. Inventam-se conceitos novos para definir o progresso. Multiculturalismo. Interculturalidade. Tolerância.

Mas, se por azar os astros e as marés se desalinham e os deuses todos nos viram as costas, se na mesa de jantar já não sobra alimento e o sustento encolhe, eis que, de repente, paira sobre nós a terrível nuvem da desconfiança. Na despensa erguemos torres de enlatados e no quintal subimos os muros coroados de cacos de garrafa a fazer de arame farpado. Trancamos a porta até do quarto de dormir, não vá o vizinho ameaçar o que é meu.

Na época da seca, qualquer um pode ser o inimigo. O pobre que é preguiçoso, o rico que tem a vida fácil, o Estado que rouba, o banco que engana. A forma deles de falar, aquela maneira estranha de vestir, o formato dos olhos e a cor da pele. Tudo no outro incomoda. Até o Deus deles é inimigo.

Já o inimigo comum é uma categoria especial de inimigo, a mais perversa. Não há nada como um inimigo comum para unir um povo frágil. O que importa é encontrar o culpado da nossa desgraça para então começar uma campanha de contaminação do seu nome. Ele: judeu, mamadou, soviético, camone, zaicô, langa, catanhô, monhê, sudaca, zuca, favelado, tuga, mwangolê, do norte, do sul, do leste. Ele, o culpado, o inimigo comum.

Depois de identificado, o inimigo comum é rapidamente eliminado do mapa das boas vizinhanças. Não o queremos por perto ameaçando a nossa colheita. O que ontem era exótico, hoje é perigoso. Não há mais lugar para todos, emprego para todos, comida para todos, espaço para todos.

O prazo de validade do multiculturalismo é a crise. A união só se testa na falta.

“Entendam: é complicado encontrar uma solução. Esta terra é de alguém.” E até já nos esquecemos que desde sempre o ser humano andou daqui para ali. Até já esquecemos que não existe pureza alguma, que toda a cultura é filha de uma outra anterior. Os africanos colonizaram o sul da Europa, os europeus colonizaram África, as Américas que foram dos índios passaram a ser dos brancos, que para lá levaram os negros. E hoje os mares voltaram a ser imensos cemitérios, como no tempo dos navios negreiros. O inimigo devia ser quem o permite e lava as mãos de culpa nas brandas águas do Mediterrâneo.

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