Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


24-09-2015

ORGULHO E DEDICAÇÃO DE QUEM GUARDA UM PEDAÇO DA HISTÓRIA


 

24 SEP, 2015

Ng Va Tac conta que uma empresa francesa chegou a tentar comprar o mecanismo do Farol

São três guardas e todos os dias limpam cuidadosamente as lentes e os mecanismos do Farol da Guia, que se acendeu pela primeira vez há precisamente 150 anos. Para além do dever profissional, sublinham o orgulho que sentem por cuidar diariamente de um pedaço da história local

 

Liane Ferreira e Viviana Chan

Foi numa manhã de céu limpo e calor intenso que a equipa de três guardas e Ng Va Tac, chefe funcional do Núcleo de Assinalamento Marítimo, receberam o JORNAL TRIBUNA DE MACAU no Farol da Guia para uma visita dedicada ao monumento que integra desde 2005 a lista do Património Mundial classificado pela UNESCO. No dia em que se assinala a passagem de 150 anos desde a inauguração do Farol, é com notório orgulho que explicam os mais ínfimos pormenores do funcionamento de um dos principais símbolos do património de Macau que se ergue por 13,5 metros de altura, distância compreendida entre a base da torre de alvenaria de pedra e o topo.

Actualmente, todo o sistema de funcionamento da luz do farol é automático e remoto, mas as circunstâncias eram bastante diferentes quando foi criado a 24 de Setembro de 1865. Nessa altura e durante muitos anos, a iluminação era feita por um candeeiro a óleo de coco, colocado no sistema dióptrico (de refracção). Este sistema baseia-se no uso de lentes que circulam em torno da fonte luminosa e foi mantido até hoje.

Três guardas tratam da manutenção diária do Farol

Criado pelo físico francês Augustin-Jean Fresnel, o sistema inclui ainda o mecanismo de rotação do aparelho, muito semelhante a um relógio de cuco. Daí que, logo à entrada do farol, exista um peso fixo a um cabo, que desce gradualmente pelo centro da torre, sendo que quando chegava ao final tinha de ser rebobinado pelo faroleiro. Todo este processo demorava seis horas, como explicou Ng Va Tac.

Talvez por trabalhar na Direcção dos Serviços de Assuntos Marítimos e de Água (DSAMA) há mais de 30 anos, Ng Va Tac ainda se recorda que uma empresa francesa tentou comprar o mecanismo do farol à Administração de Macau no final da década de 80. Tal negócio nunca se veio a concretizar, pelo que Macau continua a ser um dos dois locais no Mundo com este tipo de mecanismo único.

Segundo o mesmo responsável, as lâmpadas começaram a ser usadas em 1910, alimentadas a gás. Só em 1927 começou a ser utilizada a electricidade, tendo já o farol um alcance de 16 milhas (mais de 30 quilómetros). A partir de 1972 foi dotado de um motor que controla a velocidade de rotação, dispensando a presença de faroleiros durante a noite. “Entre as 18:30 e as seis da manhã, o Farol está em funcionamento, todos os dias. Só desligamos se estiver estragado”, assegura Ng Va Tac com voz determinada.

Para o chefe funcional do Núcleo de Assinalamento Marítimo, o Farol da Guia é o mais simbólico de todo o conjunto existente no território, que integra ainda os faróis de Hac-Sá e Ká-Hó e outros seis, em formato de bóia. Estes estão colocados nos canais marítimos para melhor visibilidade das embarcações.

Em dia de tufão, os funcionários do Farol da Guia são notificados pelos Serviços Meteorológicos e Geofísicos (SMG) para levantar o respectivo sinal e durante 24 horas não saem, cabendo a outro trabalhador a entrega das refeições.

Despercebido ao olhar, por se encontrar ao lado da bandeira da RAEM, outro mastro é usado para erguer o sinal de tufão original e também conta com um conjunto de três luzes. Consoante a combinação de cores, estas luzes representam os diferentes níveis de tufão, ao abrigo de uma linguagem internacional compreendida por todos os especialistas marítimos.

 

Brilhante e bonito

“Actualmente, não temos um faroleiro, porque é tudo automático, mas se houver um tufão ficam cá dois funcionários”, explicou Ng Va Tac, acrescentando que estes fazem parte de uma equipa de oito a trabalhar por turnos.

É neste ponto que os três guardas ganham relevância, pois têm a função de limpar duas vezes por dia as lentes e verificar se existe algum problema. “As lentes são de cristal porque têm um maior poder de reflexão e a luz chega mais longe”, disse Ng Va Tac.

As lâmpadas são outra particularidade do Farol, pois de acordo com o chefe do núcleo, a sua aquisição é cada vez mais difícil pelo facto da fábrica francesa original já não as fabricar e as de tipo LED não serem adequadas. “De momento, usamos o stock que temos em armazém, mas claro que há o risco de esgotar e tem de se encontrar outra solução”, alertou.

Centro da torre ainda mantém o mecanismo semelhante a um relógio de cuco

Outra característica que exige a manutenção diária do mecanismo do farol é o facto de ter elementos de cobre. “Se não forem limpos, oxidam muito facilmente e ficam pretos. Queremos que continue brilhante e bonito”, frisou Ng Va Tac.

“Gostamos de ouvir os elogios, que a lâmpada está bonita. Mas é um trabalho meticuloso”, nota Pun Pac Hon, um dos guardas do Farol.

“Eles sentem-se orgulhosos e acham que têm a responsabilidade de guardar o lugar e mantê-lo em ordem para os turistas e explicar a sua história”, referiu Ng Va Tac, frisando que a abertura do Farol ao público também é uma forma de dar a conhecer o trabalho de pessoas que tanto se dedicam, mas muito poucas vezes são reconhecidas por isso.

Este grupo de trabalhadores da DSAMA tem mais de 55 anos e aproxima-se da reforma. “É bom para eles trabalhar aqui, já que não têm tanta força. Trabalhavam no mar a arranjar lâmpadas e outros equipamentos da DSAMA. Os jovens preferem trabalhar noutros departamentos mais activos”, explica Ng.

Comparativamente ao trabalho anterior, o actual é bastante diferente e aborrecido, no entanto, os guardas admitem que foi apenas uma questão de se habituarem. “É trabalho e é para receber dinheiro, por isso não há problema”, concluiu Chiang Chi Pun, de forma pragmática.

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