Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


28-07-2016

O ponto nas reduções dos ordinais, na tradição do português europeu


 

Por D´Silvas Filho  26 de julho de 2016  475

 

   Porque nos dirigimos a todos os leitores de Ciberdúvidas, consideramos necessário sublinhar alguns pontos referidos na contestação «Dizer que é erro escrever "quarta" como "4ª"... é erro, mesmo», subscrita pelo consulente João Paes Gameiro.

     Em primeiro lugar, é preciso avaliar qual a vantagem de se manter o ponto nos ordinais quando na sua redução com algarismos. Como se refere no texto que aqui me leva, habitualmente permite que o género masculino do ordinal se distinga do grau de temperatura: 10.º, décimo, é diferente de 10º, graus.

    Depois, temos de avaliar o sentido que a tradição dá ao ponto neste caso. O ponto representa um significado não expresso, como o faz nas abreviaturas das palavras. Repare-se que em 10º é necessário indicar a seguir qual a unidade de medida: Celsius, Fahrenheit: 10º C ou 10º F. Ao passo que o ponto em 10.º serve para marcar taxativamente que se trata de um ordinal, sem necessidade de outras indicações.  

    Notar que uma sigla (sigloide, se soletrada letra a letra, ou siglema se forma palavra) é uma redução formada por um conjunto de letras que se convenciona representar uma dada designação, dispensando pontos.

    Claro que todas estas regras são de facto meras convenções. Lembrar, contudo, que, se há convenções que não aparecem nas Normas Ortográficas, muitas fazem parte da herança linguística transmitida nas gerações de falantes. Por exemplo, no ponto 2.º da Base XIX do AO90 não há referência, de ­a) a i) de que se deve iniciar o período com maiúscula; e, no entanto, essa é uma regra tradicional.

     O facto de o texto assinado doAO90 não ter os pontos em apreço talvez tenha sido devido a preferência ou esquecimento dos seus relatores. Efetivamente, no Brasil o ponto nas reduções dos ordinais não é taxativo. Mas o texto do AO90 não é em si uma norma ortográfica, pois tem dislates de falta de revisão: entre outros mais (de que destaco 10 na página 329 da 6.ª edição do Prontuário da Texto), há alguns caricatos, como o facto de a norma recomendar a supressão do acento nas graves em -oi- e aparecerem palavras com a grafia recomendada: jibóia, amigdalóide, válidas só para a norma de 1945...

    Insisto que, na tradição do português europeu, têm ponto as reduções dos ordinais, com algarismos árabes, na substituição da designação por extenso.

    Escrevi acima “2.º da Base XIX”. Pois é assim. No livro em meu poder, com o título Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, editado pela LINK Imprensa Nacional – Casa da Moeda, com data de 1991, mesmo logo a seguir à assinatura do AO90, todas as reduções dos ordinais do texto do Acordo estão com ponto.

    Se formos ao portal da Academia das Ciências de Lisboa, entidade ainda com a missão de dar ao Estado parecer sobre a língua, e se clicarmos em “Prémios”, aparece logo no texto: ARTIGO 1.º.

   Quem considera o texto da Constituição Portuguesa uma bíblia em tudo, verá, nesse texto em linha, que as reduções dos ordinais estão todas com ponto.  

    Pode apresentar-se a desculpa de que a uniformização da língua e a simplicidade passaram a recomendar as reduções dos ordinais sem ponto. No entanto, há um movimento generalizado, mesmo para quem aceita escrever noAO90, de que não se deve abdicar completamente das virtualidades que o português europeu tem, e foram o fruto da meditação de muitos linguistas lusos idóneos. O caso da supressão drástica de consoantes não articuladas que eram úteis no português europeu, e por isso tem de ser revisto, é um dos paradigmáticos. Ora a continuação da indispensabilidade do ponto nas reduções dos ordinais parece também estar assente no pós-AO90, de acordo com os testemunhos acima. Eu não o vou dispensar e recomendo o mesmo para Ciberdúvidas.     

    Em resumo, ninguém vai preso em Portugal se escrever a redução sem este pontinho, mas pode ser considerado ignorante no português europeu quanto à nossa tradição vernácula. O que não é mesmo admissível, por descortês, é catalogar dogmaticamente de estar a laborar em erro quem aconselha que se respeite essa tradição.

 

 

          [Sobre esta controvérsia,  O ponto é ou não obrigatório para marcar uma abreviação?, ver ainda: «Dizer que é erro escrever "quarta" como "4ª"... é erro, mesmo», + Porquê o ponto nas abreviaturas – e já não nas siglas.]

 

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