Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


29-08-2016

A Desburkinização dos Espíritos


Sirma estava na praia com a família. Sirma estava demasiado vestida para uma mulher (muçulmana), na opinião dos polícias franceses. Então, foi forçada a despir-se. O episódio pôs meio mundo a falar numa peça de vestuário, o burkini, espécie de burka para banhos e da decisão de o proibir, tomada por diversas cidades da Riviera, com o apoio do primeiro-ministro francês, Manuel Valls.

Sirma, acrescente-se, a bem da verdade, nem sequer vestia burkini, e sim um simples lenço.

O episódio provocou enorme polémica. Em consequência, as vendas da referida peça de vestuário, criada por uma australiana, dispararam duzentos por cento. A inventora, Aheda Zanetti, não sabe muito bem se há-de queixar-se ou rejubilar. “O burkini representa a liberdade e a felicidade para a mulher muçulmana, além de uma grande mudança de estilo de vida.” – Assegura.

Curiosamente, os fascistas islâmicos odeiam o burkini quase tanto quanto Valls e, ao menos em parte, por razões idênticas. O primeiro-ministro francês acha que a peça representa uma ofensa ao estilo de vida da maioria da população francesa; os fascistas islâmicos acham que a peça representa uma ofensa ao estilo de vida das mulheres muçulmanas – pois não é suposto que frequentem praias, nem despidas nem vestidas. Valls acha que o burkini degrada as mulheres; os fascistas islâmicos também.

Tanto os fascistas islâmicos quanto Valls julgam-se no direito de dizer às mulheres como se devem vestir; acham ainda que têm o direito de as despir em público se elas não estiverem vestidas como eles gostariam.

Há muitos anos, viajando pela Malásia, vi um cartoon num jornal local que nunca mais esqueci. O primeiro quadrinho mostrava um grupo de navegadores europeus desembarcando numa praia tropical e tropeçando em índigenas nus. Horrorizados, davam instruções aos indígenas para que se cobrissem. No quadrinho seguinte, quinhentos anos mais tarde, um grupo de turistas europeus desembarcavam numa praia tropical, despiam-se, e logo eram confrontados com o horror de um polícia indígena, que os forçava a cobrirem o corpo.

Este cartoon parece-me mais actual do que nunca. Serve para lembrar que muita da severa intransigência moral que hoje vigora em vários países do Sul, não apenas islâmicos, foi lá plantada pelos próprios colonizadores europeus.

De resto, a burka, com outros nomes, e pequenas variações, ainda há poucos anos era comum nas zonas rurais de muitos países da Europa cristã. Lembro-me muito bem das viúvas vestidas de negro, dos pés à cabeça, em muitas aldeias de Portugal. Ainda há poucos dias, visitando a Nazaré, uma vila costeira, próximo de Lisboa, voltei a ver as mulheres dos pescadores, vestindo as pesadas e tradicionais sete saias, além do lenço escuro na cabeça, sob um calor de quase quarenta graus.

Pessoalmente, estou com aqueles indígenas de há quinhentos anos, que tanto chocaram os navegadores europeus: quanto menos roupa melhor, sobretudo na praia. Todavia, quero ter o direito de ir para a praia, para qualquer praia, vestido como me apetecer, inclusive de pinguim. E gostaria que esse direito fosse extensivo a toda a humanidade.

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