Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


07-02-2017

CATÁLOGO DE CONTOS TRADICIONAIS PORTUGUESES


Dois académicos da Universidade do Algarve demoraram 20 anos a compilar cerca de 10 mil versões portuguesas de 1111 contos, muitas delas inéditas. O catálogo é o único que abrange todos os contos tradicionais em Portugal e foi totalmente produzido no Algarve. 

Representa uma das obras regionais mais completas em todo o mundo.

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Quantas vezes já ouvimos o provérbio «quem conta um conto acrescenta um ponto»? 

É por isso que o trabalho de Isabel Cardigos, 74 anos, e Paulo Correia, 50 anos, é «interminável». Até porque estes académicos são os únicos dois especialistas em Portugal em catalogação de contos tradicionais.

Isabel Cardigos licenciou-se em filologia germânica e doutorou-se em 1996 no King’s College em Londres com uma tese sobre contos maravilhosos na tradição oral portuguesa. Em 1993 ingressou na Universidade do Algarve e fundou, em 1995, com o professor J.J. Dias Marques, o Centro de Estudos Ataíde Oliveira (CEAO) dedicado ao estudo e recolha da literatura oral.

Já Paulo Correia é licenciado em Antropologia e professor da disciplina na Universidade do Algarve. Em 1997 juntou-se a Cardigos através do CEAO, e desde então têm desenvolvido em conjunto um trabalho inédito na área da investigação científica do conto de tradição oral.

O «Catálogo de Contos Tradicionais Portugueses» tem dois grossos volumes, num total de 1848 páginas. Classifica e descreve os contos, publicados e inéditos, recolhidos desde o séc. XIX em mais de 300 concelhos de Portugal continental e ilhas.

«Um conto tradicional é uma narrativa sem autor, passada por tradição oral através dos tempos e que é identificável numa área cultural, no nosso caso, a área indoeuropeia, onde circulam contos semelhantes entre si», explica Correia.

O primeiro volume do catálogo é um instrumento vocacionado sobretudo para especialistas. Nele, os contos estão organizados segundo um método consensual entre os peritos de todo o mundo, o chamado sistema Aarne – Thompson – Uther (ATU), iniciado em 1910, para identificar um conto em qualquer ponto do mundo, independentemente da língua.

Neste sistema, cada conto tem um número e um título. Diga-se que do mesmo conto pode haver centenas de versões recolhidas em muitos países. «Quantas mais melhor, para o podermos estudar», considera. A tipologia divide-se em contos de animais, maravilhosos, religiosos, novelescos, do gigante (diabo) estúpido, jocosos e os contos formulísticos.

Já o segundo volume do catálogo é uma antologia com 895 páginas recheadas com cerca de 600 versões, muitas delas inéditas, que exemplificam os contos classificados no primeiro volume desta obra. Todos com duas ou mais versões, na sua maioria inéditos. «É possivelmente a melhor amostragem da nossa tradição oral contística».

A obra foi lançada há pouco mais de um mês e está disponível nas livrarias Fnac, Wook e editora Afrontamento. Ambos os volumes podem ser adquiridos em separado e cada um custa 26 euros.

O início da recolha

Quando Isabel Cardigos se mudou para o Algarve, percebeu que «ainda havia gente que se lembrava e contava histórias tradicionais» e e, juntamente com J. J. Dias Marques, decidiu iniciar a sua recolha. Quase em simultâneo iniciou-se na Universidade a disciplina de Literatura Oral, corria o ano de 1995. Desde então, Isabel Cardigos (até 2002) e J. J. Dias Marques (desde 2003 até à atualidade), incentivaram «os alunos a fazer recolhas em cassetes de contos, lendas, canções, benzeduras, provérbios e anedotas. E este arquivo inédito deu origem a materiais que não existiam ainda editados em livro», recorda Paulo Correia.

Foi com base não só nos materiais já publicados, mas também nas recolhas inéditas dos alunos da Universidade do Algarve que se fez o catálogo do conto tradicional português. Também o financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FTC) foi fundamental para criar um arquivo e catálogo do conto português, projeto que resulta agora na publicação desta obra. «Os contos fazem parte da nossa identidade enquanto povo. Ainda que com a mudança estrutural nas nossas sociedades este tipo de narrativas tenha perdido, em parte, a sua razão de ser. Porque já não há locais onde se contam, e porque veiculam por vezes mensagens que deixaram de fazer sentido num mundo urbano.

No entanto, são importantes para perceber um fundo civilizacional», justificam. «No passado, e em meios tradicionais, os contos serviam também como uma espécie de escola informal que alimentava a alma popular». Cardigos remata reforçando que são «uma manifestação ilustrativa da nossa identidade» e que esta partilha é necessária «para não perdermos a nossa substância».

Universidade do Algarve guarda segredos da tradição oral

O Centro de Estudos Ataíde Oliveira (CEAO) «reúne um dos espólios mais importantes de materiais da tradição oral, possuindo uma das maiores bases de dados e arquivo de Portugal», refere Correia. É ainda o único a nível nacional que se dedica à catalogação de contos. A equipa do CEAO é composta por oito elementos e todos especializados em diversas áreas. Por exemplo, o atual diretor José Dias Marques é especializado em romanceiro e lendas, Lucília Chacoto interessa-se por provérbios, Isabel Dias interessa-se pelas lendas de santos na Idade Média, Olga Fonseca dedica-se à utilização pedagógica dos contos, Adriana Nogueira e Alexandra Mariano estudam as relações da tradição greco-latina com a portuguesa, Isabel Cardigos é especialista em contos maravilhosos e Paulo Correia é especialista na generalidade em contos e lendas tradicionais.

Em breve, breve, a biblioteca do CEAO deverá ser integrada na Biblioteca da Universidade do Algarve. «Temos uma biblioteca especializada muito rica. É um segredo muito bem guardado», confidencia Cardigos. No entanto, sublinha que «a digitalização do arquivo, em papel, de versões dos contos tradicionais, guardado em arquivadores no CEAO, é urgente, assim como a sua colocação on-line, de forma a que todos, em qualquer parte do mundo, a ele tenham acesso».

Ataíde Oliveira «nasceu no Algoz mas passou quase toda a sua vida em Loulé e é um dos maiores coletores algarvios. Devemos-lhe imenso. Era um apaixonado dos contos e fez uma recolha extraordinária não só de contos mas também de lendas, cancioneiro, romanceiro e orações», explica a professora.

Loulé é, na verdade, um dos mais frutuosos concelhos em termos de recolhas pois «teve a sorte de ter gente interessada» neste trabalho. Existe inclusive uma coleção de cinco volumes sobre o património oral do concelho, da autoria de Idália Custódio, Maria Aliete Galhoz e Isabel Cardigos», reforça Correia.

Algarve, uma região rica em histórias

«Acho que o Algarve ainda é uma região muito rica em tradição oral. Nomeadamente, na serra e o Algarve profundo. É talvez o último bastião onde as pessoas mais idosas ainda conhecem estas histórias. Ainda há muitas por recolher. Uma das nossas melhores recolhas foi feita em Cachopo por uma aluna do mestrado. Um dos fatores essenciais para a preservação destes contos é o próprio isolamento das pessoas, mas também o analfabetismo, pois potencia a memória. Estes anciões que não aprenderam a ler guardam tudo na preciosa memória», explica Correia.
No entanto, «é uma tradição que tem vindo a enfraquecer», lamenta Cardigos. «As pessoas já não têm tempo para se sentarem, conversar e partilhar histórias. Ainda assim continuamos sedentos por ouvi-las. O catálogo é uma espécie de registo nostálgico». Por fim, Correia termina desafiando os leitores do barlavento: «se tiverem uma história por contar estamos cá para ouvi-la». 

Basta remeter o contributo para o e-mail ceao@ualg.pt

http://barlavento.pt/destaque/investigadores-algarvios-lancam-catalogo-de-contos-tradicionais