Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


05-01-2005

O outro tsunami John Pilger


por John Pilger

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 O cruzados ocidentais , Estados Unidos e Grã-Bretanha, estão a dar às vítimas do tsunami uma ajuda inferior ao custo de um bombardeiro Stealth ou de uma semana da sangrenta ocupação do Iraque. O gasto com a festa da próxima posse de George Bush reconstruiria grande parte da linha costeira do Sri Lanka. Bush e Blair aumentaram as suas primeiras gotas de " ajuda " só quando ficou claro que os povos de todo o mundo estavam espontaneamente a oferecer milhões e que se anunciava um problema de relações públicas. A actual " generosa " contribuição do governo de Blair é um dezasseis avos dos 800 milhões de libras gastos com o bombardeamento do Iraque antes da invasão e cerca de um vigésimo da doação de 1 milhão de libras , conhecida como empréstimo suave (soft loan), ao militares indonésios a fim de que pudessem adquirir caças-bombardeiros Hawk.

Em 24 de Novembro , um mês antes do abalo do tsunami, o governo Blair deu o seu apoio a uma feira de armas em Djakarta "destinada a preencher a necessidade urgente de as forças armadas [indonésias] reverem as suas capacidades de defesa ", relatou o Jakarta Post. Os militares indonésios , responsáveis pelo genocídio no Timor Leste , assassinaram mais de 200 mil civis e " insurrectos " em Aceh. Entre os expositores na feira de armas estava a Rolls-Royce, fabricante dos motores para os Hawks, os quais , juntamente com os veículos blindados Scorpion fornecidos pela Grã-Bretanha, metralhadoras e munições , estavam a aterrorizar e matar o povo em Aceh até ao dia em que o tsunami devastou a província .

O governo australiano, actualmente a cobrir-se de glória com a sua modesta resposta ao desastre histórico acontecido aos seus vizinhos asiáticos , treinou secretamente as forças especiais da Indonésia , Kopassus, cujas atrocidades em Aceh estão bem documentadas. Isto está em conformidade com os 40 anos de apoio australiano à opressão na Indonésia , notavelmente com a sua devoção ao ditador Suharto enquanto as suas tropas ensanguentavam um terço da população do Timor Leste . O governo de John Howard — notório pelo seu aprisionamento de crianças que procuravam asilo — está actualmente a desafiar o direito marítimo internacional ao negar a Timor Leste o que lhe é devido em royalties do petróleo e do gás , cujo valor monta a US$ 8 mil milhões . Sem esta receita , Timor Leste , o país mais pobre do mundo , não pode construir escolas , hospitais e estradas ou proporcionar trabalho ao seu jovem povo , 90 por cento do qual está desempregado.

A hipocrisia , o narcisismo e a propaganda de ludibrio dos senhores do mundo e do seus apaniguados estão em perseguição cerrada . Abundam superlativos quanto às suas intenções humanitárias enquanto a divisão da humanidade entre vítimas valiosas e não valiosas domina o noticiário . As vítimas de um grande desastre natural são valiosas ( embora não se saiba por quanto tempo ) ao passo que as vítimas dos desastres imperiais fabricados pelo homem são sem valor e frequentemente não mencionáveis. De certo modo , os repórteres não podem induzir-se a si próprios a relatar o que está a acontecer em Aceh, apoiado pelo " nosso " governo . Este espelho moral que só reflecte um lado permite-nos ignorar um rastro de destruição e carnificina que constitui um outro tsunami.

Considere as agruras do Afeganistão, onde a água limpa é desconhecida e a morte de recém-nascidos é comum . Na conferência do Partido Trabalhista em 2001, Tony Blair anunciou a sua famosa cruzada para " reordenar o mundo " com a promessa : "Ao povo afegão, assumimos este compromisso ... Nós não o abandonaremos... trabalharemos convosco para assegurar [ que se encontra um caminho ] para sair da pobreza miserável que é a sua presente existência ". O governo Blair estava prestes a tomar parte na conquista do Afeganistão, no qual morreram 25 mil civis. Em todas as grandes crises humanitárias de que se tem memória , nenhum país sofreu mais e nenhum foi menos ajudado. Apenas 3 por cento de toda a ajuda internacional gasta no Afeganistão foi para a reconstrução , 84 por cento é para a " coligação " conduzida pelos militares americanos e o resto são migalhas para ajuda de emergência . Aquilo que é muitas vezes apresentado como rendimento da reconstrução é investimento privado , tais como os US$ 35 milhões que financiarão um proposto hotel de cinco estrelas , sobretudo para estrangeiros . Um conselheiro do ministro dos assuntos rurais contou-me em Cabul que o seu governo recebera menos de 20 por cento da ajuda prometida ao Afeganistão. " Nós não temos dinheiro suficiente para pagar salários , sem falar em plano de reconstrução ", disse ele .

A razão , naturalmente que não falada , é que os afegãos estão entre as vítimas menos valiosas. Quando um helicóptero americano canhoneou repetidamente uma remota aldeia rural , matando até 93 civis, um oficial do Pentágono foi levado a declarar : "As pessoas ali estão mortas porque nós quisemos que elas morressem".

Tornei-me agudamente consciente deste outro tsunami quando cobri o Cambodja em 1979. Após uma década de bombardeamento americano e de barbaridades do Pol Pot, o Cambodja jazia tão prostrado como Aceh está hoje . A doença somava-se à fome e o povo sofria um trauma colectivo que poucos podiam explicar . Mas durante nove meses após o colapso do regime do Khmer Vermelho não chegou qualquer ajuda efectiva de governos ocidentais . Ao invés disso, um embargo ocidental apoiado pela China foi imposto ao Cambodja, negando-lhe virtualmente toda a maquinaria de recuperação e assistência . O problema para os cambojanos era que os seus libertadores , os vietnamitas, tinham vindo do lado errado da guerra fria , pois recentemente haviam expulsado os americanos da sua pátria . Aquilo tornava-os vítimas não valiosas, descartáveis .

Algo semelhante , o amplamente silenciado cerco imposto ao Iraque durante a década de 1990 e intensificado durante a " libertação " anglo-americana. Em Setembro último a Unicef relatou que a desnutrição entre as crianças iraquianas havia duplicado sob a ocupação . A mortalidade infantil está agora aos níveis do Burundi, mais elevada do que no Haiti e no Uganda. Há pobreza lancinante e uma escassez crónica de remédios . Os casos de cancro estão a aumentar rapidamente, especialmente cancro da mama , a poluição radioactiva está generalizada. Mais de 700 escolas estão danificadas por bombardeamentos. Dos milhares de milhões que se disse terem sido afectados à reconstrução no Iraque, apenas US$ 29 milhões foram gastos , a maior parte dos quais com mercenários a protegerem estrangeiros . Pouco disto é notícia no ocidente .

Este outro tsunami é em escala mundial, provocando 24 mil mortes a cada dia devido à pobreza, à dívida e à divisão que são os produtos de uma super-seita chamada neoliberalismo. Isto foi reconhecido pelas Nações Unidas em 1990 quando convocou os Estados mais ricos para uma conferência em Paris com o objectivo de activar um "programa de acção" para resgatar as nações mais pobres do mundo. Uma década depois, todos os compromissos assumidos pelos governos ocidentais foram virtualmente rompidos, tornando a asneirada de Gordon Brown acerca de o G8 "partilhar o sonho britânico" de acabar com a pobreza naquilo mesmo — uma asneirada. Muito poucos governos ocidentais honraram a "linha de base" das Nações Unidas e concederam uns miseráveis 0,7 por cento ou mais do seu rendimento nacional à ajuda além-mar. A Grã-Bretanha deu apenas 0,34 por cento, tornando o seu "Department for International Development" uma brincadeira de mau gosto. Os EUA deram 0,14 por cento, a porcentagem mais baixa de qualquer Estado industrial.

Em grande medida invisível e não imaginável pelos ocidentais, milhões de pessoas sabem que as suas vidas foram declaradas supérfluas. Quando tarifas e subsídios a alimentos e combustível são eliminados sob um diktat do FMI, pequenos agricultores e camponeses sem terra sabem que enfrentam o desastre, razão porque os suicídios entre agricultores são epidémicos. Somente os ricos, diz a Organização Mundial de Comércio, podem proteger as suas indústrias e agricultura internas; somente eles tem o direito de subsidiar exportações de carne, cereais e açúcar e fazer dumping deles nos países pobres a preços artificialmente baixos, destruindo assim vidas e meios de vida.

A Indonésia, outrora descrita pelo Banco Mundial como "um aluno modelo da economia global", é um caso evidente. Muitos daqueles levados à morte em Sumatra no Boxing Day foram desapropriados pelas políticas do FMI. A Indonésia tem uma dívida impagável de U$ 100 mil milhões. O World Resources Institute diz que a portagem deste tsunami fabricado pelo homem atinge 13-18 milhões de mortes de crianças por ano em todo o mundo, ou 12 milhões de crianças abaixo da idade de cinco cano, segundo um Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas. "Se 100 milhões foram mortos nas guerra formais do século XX", escreveu o cientista social australiano Michael McKinley, "por que são eles privilegiados em compreensão em relação às mortes anuais de crianças desde 1982 devido aos programas de ajustamento estrutural?".

Que o sistema que provoca isto tenha a democracia como o seu grito de guerra é uma zombaria que os povos de todo o mundo cada vez entendem melhor. Está a aumentar o nível de consciência, o que proporciona mais do que esperança. Desde que os cruzados em Washington e Londres malbarataram a simpatia mundial pelas vítimas do 11 de Setembro de 2001 a fim de acelerar a sua campanha de dominação, avança uma inteligência pública crítica e encara Blair e Bush como mentirosos e as suas acções culpáveis como crimes. A presente efusão de ajuda às vítimas do tsunami entre pessoas comuns no ocidente é uma recuperação espectacular das políticas de comunidade, moralidade e internacionalismo negadas pelos governos e pela propaganda corporativa. Ao ouvir turistas retornando de países abalados, dominado pela gratidão pelo modo gentil e expansivo como alguns dos mais pobres entre os pobres lhes deram abrigo e cuidaram deles, ouve-se a antítese das "políticas" que só cuidam da avareza.

"A mostra mais espectacular de moralidade pública que o mundo já viu", foi como a escritora Arundhati Roy descreveu a cólera anti-guerra que sacudiu o mundo quase dois anos atrás. Um estudo francês estima agora que 35 milhões de pessoas manifestaram-se naquele dia de Fevereiro [de 2003] e afirma que nunca houve nada como isso, e que era apenas o princípio.

Isto não é retórica; a renovação urbana não é um fenómeno, é ao invés a continuação de uma luta que por vezes pode parecer estar congelada mas é uma semente por baixo da neve. Tome-se a América Latina, há muito declarada invisível e supérflua no ocidente. "Os latino-americanos foram treinados para a impotência", escreveu outro dia Eduardo Galeano. "Uma pedagogia transmitida desde tempos coloniais, ensinada por soldados violentos, professores timoratos e frades fatalistas, enraizou nas nossas almas a crença de que a realidade é intocável e que tudo o que podemos fazer é engolir em silêncio as desgraças que cada dia nos traz". Galeano estava a celebrar o renascimento da democracia real na sua pátria, o Uruguai, onde o povo votou "contra o medo", contra a privatização e seu cortejo de indecências. Na Venezuela, as eleições municipais e estaduais de Outubro marcaram um crédito para a nona vitória democrática do único governo do mundo que partilha a sua riqueza petrolífera com os mais pobres do seu povo. No Chile, o último dos militares fascistas apoiados pelos governos ocidentais, nomeadamente Thatcher, estão a ser processados por forças democráticas revitalizadas.

Estas forças são parte de um movimento contra a desigualdade, a pobreza e a guerra que se tem levantado nos últimos seis anos e é mais diverso , mais empreendedor , mais internacionalista e mais tolerante para com as diferenças do que qualquer coisa que tenha conhecido na vida . É um movimento livre do fardo de um liberalismo ocidental que acredita representar uma forma superior de vida ; os mais sábios chamam a isto colonialismo com outro nome . Os mais sábios também sabem que assim como a conquista do Iraque está a desconjuntar-se, assim também todo o sistema de dominação e empobrecimento poderá igualmente desfazer-se.

O original encontra-se em http://pilger.carlton. com /print e em

The New Statesman, edição de 10/Jan/2005.

Este artigo encontra-se em http:// resistir .info/ . 

10/Jan/05

enviado por L.Seabra , Macau