Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


21-02-2017

POR QUE RAZÃO É PORTUGAL O PAÍS ONDE AS UVAS TÊM DENTES? Cheong Kin Man


Cheong Kin Man*

“Pu Tao Ya” ou “Pou Tou Nga” (葡萄牙), é o nome oficial de Portugal, em chinês mandarim e em cantonense, respectivamente. Literalmente, os uvas-dentes. Mas porquê? Hoje, o chinês moderno conta entre as raras línguas que empregam ainda os logogramas. Cada logograma tem vários significados, muitos até. Para os chineses, os caracteres que compõem o nome de Portugal são escolhidos por razões fonéticas, ou seja, não têm um significado especial.
Lembro-me ainda, há onze anos, quando Yao Feng, poeta residente em Macau e meu antigo professor de tradução literária, nos mostrou o seu blogue escrito em chinês, cujo nome era “País onde os dentes crescem das uvas”. For fun, talvez. Mas penso que para os intelectuais do império manchu do século XIX, já em fase de decadência, esta abordagem não teria tantos adeptos. Hsu T’ung (1819-1900), alto conselheiro do imperador e mandarim que tinha antipatia pelos estrangeiros, mostrou-se surpreendido: “As uvas têm dentes e os dentes tornaram-se num país?! Nunca alguém viu algo tão ridículo, nem na história nem nos livros!”
No século XVI, os europeus, sobretudo os portugueses, eram denominados pela Corte imperial celestial de “Fo-Lang-ki” ou “Fo-Lang-chi” (Pinyin: Fo-Lang-Ji, 佛朗機/佛朗机), o que significava gentes com “canhões francos”, segundo indicam vários estudos. O «negócio da China» dos portugueses com este país concedeu-lhes o prestígio de representar os europeus. Portugal era conhecido como o “Grand País além do Oceano Ocidental”, o “Ta-ssi-yang-kuo” (大西洋國/大西洋国). Este título era também o nome de uma célebre revista de Macau no século XIX. E, ainda hoje, o Banco Nacional Ultramarino de Macau utiliza-o na sua designação oficial em chinês. Os habitantes de Macau que têm vivido no território há já várias gerações chamam ainda Portugal de “Saiyong” (西洋), tanto em cantonense como em crioulo macaense. Estes caracteres pronunciados em mandarim, “Hsi-yang” (Pinyin: Xi-Yang, também 西洋), ou em cantonense, “Saiyong”, são também em chinês moderno uma palavra arcaica para dizer o “Ocidente”.
Coloca-se entretanto uma questão: como se justifica que Portugal não tenha feito todos os esforços necessários para guardar um nome que representa o seu passado glorioso diante dos povos asiáticos e tenha escolhido uma outra denominação que, já para não falar do seu estranho significado, não corresponde foneticamente ao chinês mandarim moderno? No que diz respeito à primeira parte da questão, o autor remete para investigações futuras, mas já quanto à segunda parte, pode dizer-se que “Pu Tao Ya” não é, desde o princípio, uma tradução chinesa, pelo menos não do mandarim, mas tem origem no japonês.
Para os chineses, o “Oceano Ocidental” era Portugal, enquanto o Japão era conhecido como o “Oceano Oriental”. Por outro lado, na época nipónica Meiji (1868-1912), o chinês clássico era ainda uma língua exclusiva das elites. Os nomes dos países estrangeiros eram assim traduzidos foneticamente com ideogramas de origem chinesa, os Kanjis. Para Portugal: Budō (葡萄), as uvas, e Ga (牙), os dentes.
Sem mencionar os inúmeros documentos administrativos de um Japão em modernização, hoje bem preservados nos Arquivos Nacionais e nos Arquivos Diplomáticos daquele país (ver imagem), os grandes autores japoneses mundialmente conhecidos da época, como Akutagawa, Natsume ou Yoshikawa, empregavam também esta transliteração.

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Capa de um conjunto de documentos escritos à mão sobre os jornalistas portugueses registados no Japão nos primeiros anos da era Showa (1926-1989). Colecção dos Arquivos Diplomáticos do Japão. Fotocópia disponibilizada pelos Arquivos Nacionais do Japão.

Foi talvez com o aparecimento dos outros poderes ocidentais no Extremo-Oriente que os asiáticos confucionistas compreenderam que Portugal não era o único país representante do Ocidente. O nome “Grand País além do Oceano Ocidental” foi deixado ao lado. É nos anos 20 do século passado, o mais tardar, que se verifica que os intérpretes-sinólogos macaenses começaram a adoptar “uvas-dentes” como nome oficial do país.
Hoje, os japoneses empregam o primeiro Kanji “Bu” (葡) apenas como abreviação do nome de Portugal. Os coreanos utilizam também da mesma maneira o carácter “Pu” (포), mas apenas em raras situações. De facto, sendo o coreano completamente fonetizado, utilizar o som daquele primeiro carácter sem o logograma que lhe está associado já não transmite o mesmo significado como antigamente. Ora, no mundo existem ainda duas línguas que guardam este nome completo: em chinês “Pu Tao Ya” e em vietnamita “Bồ Đào Nha”. Em chinês e em vietnamita, Portugal é o país onde as uvas têm dentes.
Mas será que “Pu Tao Ya” não tem realmente nada a ver com a língua chinesa?

* Doutorando em antropologia visual da Universidade Livre de Berlim. Realizador de «Uma Ficção Inútil», natural de Macau

Foto do autor: Sadaf Javdani

https://extramuros.me/2017/02/22/por-que-portugal-e-o-pais-onde-as-uvas-tem-dentes/