Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


25-08-2008

Sacuntala de Miranda – da coragem cívica à pesquisa histórica


Sacuntala de Miranda – da coragem cívica à pesquisa histórica

Faleceu no passado dia 30 de Janeiro, Sacuntala de Miranda, Professora universitária, investigadora, cidadã. Num país ocupado pela obsessão acéfala do futebol, consumismo e centros comerciais, o desaparecimento desta prestigiada micaelense nem sequer foi notado.
Após uma estadia em Londres, onde concluiu estudos universitários e participou na famosa “recepção” a Marcelo Caetano, em 1973, que chamou a atenção do mundo para a guerra colonial, regressa a Portugal para defender o doutoramento. Da sua passagem pela Inglaterra, refira-se ainda que, no decorrer das suas investigações, contactou com o reconhecido historiador Eric Hobsbawm e com o dirigente trabalhista Tony Benn. Iniciaria depois de 1974 uma carreira académica onde se evidenciou na orientação do mestrado em História Contemporânea da Universidade Nova. Colaborou em diversas publicações da sua área de investigação, sendo, quanto a nós, esclarecedor salientar a sua participação nos volumes XI e XII da Nova História de Portugal, com direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, Presença, 1992.
Quanto aos estudos que incidem na sua terra natal deixou-nos três interessantes livros: O Ciclo da Laranja e os “gentlemen farmers” da Ilha de S. Miguel – 1780-1880, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1989; Quando os Sinos Tocavam a Rebate, Salamandra, 1996; A Emigração Portuguesa e o Atlântico, 1870-1930, Salamandra, 1999. E ainda um número especial da revista Ler História, “Açores: peças para um mosaico”, publicado em 1996, o qual beneficia da contribuição de diversos investigadores da realidade insular, iniciativa da nossa autora.
Em O Ciclo da Laranja Sacuntala de Miranda proporciona aos leitores o conhecimento dessa época de abundância que na ilha de S. Miguel se prolongou desde a segunda metade do século XVIII até às últimas décadas de Novecentos, quando as pragas desse tempo, o “coccus” e a “lágrima”, liquidaram a espantosa produção. Vários factores contribuem para a cultura e exportação da laranja: a pujança do mercado britânico numa fase de expansão económica, o dinamismo de uma classe de proprietários e comerciantes micaelenses, a fertilidade do solo, a mão-de-obra barata. O lucro e a abastança desta intensa actividade gerou as fortunas, os títulos e os palacetes dos grandes proprietários, mas beneficiou também os camponeses pobres. E enquanto os navios eram carregados de citrinos para os portos da Grã-Bretanha, alguns fundaram, em 1843, a Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, a qual iria promover o desbravamento das terras incultas, contactar associações estrangeiras, ou divulgar, através do seu orgão, O Agricultor Micaelense, as espécies de plantas que poderiam adaptar-se ao fecundo chão da ilha. Surgem os esplêndidos jardins de S. Miguel, alguns ostentando o nome do fundador. Um dos mais proeminentes elementos da S. P. A. M., José do Canto, irá propor a criação de um imposto sobre a laranja exportada para custear as obras de construção do porto artificial de Ponta Delgada, as quais, no entanto, só terão início em 1862.
No livro, Quando os Sinos Tocavam a Rebate, a autora ocupa-se das tensões sociais que tiveram lugar no Verão de 1869, em diversos concelhos de S. Miguel. Estes “motins de Antigo Regime”, evidenciam as dificuldades que enfrentava a população camponesa da ilha quando já se faziam sentir os efeitos do abrandamento da portentosa época da laranja. Neste caso, o motivo principal dos “alevantes” é a escassez do milho, base alimentar dos trabalhadores rurais. Após a colheita, o milho era muitas vezes açambarcado pelos grandes proprietários e comerciantes, esperando altura de melhores preços a fim de o exportar para outros mercados. Ao mesmo tempo, as alterações que o liberalismo introduziu, como a extinção das ordens religiosas, a abolição dos dízimos, o pagamento dos impostos em dinheiro, as novas medidas que substituem os padrões tradicionais utilizados no comércio, se por um lado reduzem o poder e as influências dos grandes, ou aniquilam a força do clero, provocam grande instabilidade entre a população mais pobre. Por outro lado, a incompreensão dessas alterações por parte de uma população analfabeta gera desconfiança nas autoridades. Na Ribeira Grande os sinos tocaram a rebate e a multidão «armada de foices, machados, martelos e facas, em grande agitação e vociferando contra os impostos,» invade os Paços do Concelho e todas as suas repartições, parte a mobília que lança pelas janelas, assim como pedaços dos livros de matrizes da Fazenda Pública. A intervenção do Governador Civil, que obriga os grandes proprietários a abastecerem o mercado local, e algumas “sopas” oferecidas pelas Misericórdias, trouxeram de novo a paz à “Ilha Verde”, para que tudo ficasse na mesma.
Numa linha de continuidade, surge o título A Emigração Portuguesa e o Atlântico, obra que as grandes causas da diáspora dos ilhéus: a crise da produção laranja e o desemprego; a abolição do tráfico de escravos, em 1851, e da escravatura, em 1880, aumentando a necessidade de mão-de-obra para a cultura do café; o vapor e o desenvolvimento das companhias de navegação transatlânticas que se dirigiam para o Brasil, primeiro destino dos emigrantes insulares, que mais tarde haviam de encaminhar-se para o Hawai e para os Estados Unidos. Como pano de fundo, o regime de grande propriedade, consequência inevitável da pobreza. Escrevia o jornal O Norte, no dia 10 de Maio de 1892: «Pouco aqui tinham; alguns nem uma palhota possuem, tudo vendem. O produto quase nunca chega para o pagamento de passagens e passaportes. (...) Quase todos embarcam descalços, mal vestidos e sem real na algibeira.» A odisseia da emigração como parte integrante do trabalho duma investigadora açoriana.

Mário Machado Fraião