Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


05-03-2010

Angola Uma admirável retrospectiva na Colecção Ensa-Arte


A apreciação que é feita após a leitura do magnífico catálogo editado, recentemente, em quadricromia, pela Empresa Nacional de Seguros de Angola (Ensa), traduz-se numa visível obra que restitui o seu precioso património plástico, constituído no decurso dos últimos vinte anos, contendo 157 obras de pintura e escultura.

Impressa na península Ibérica, precisamente no Porto, segunda cidade lusa, generosamente, esta publicação estala-se sobre 173 páginas, sob uma ilustração de cobertura da surpreendente escultura, derivada de técnicas mistas “Angola em Movimento”, de autoria de Ana Suzana David, de nome artístico Kiana.

Prefaciada pelo presidente do Conselho de Administração da Resseguradora Angolana, Manuel Gonçalves, esta antologia, de factura absolutamente internacional, articula-se numa dezena de capítulos lembrando, nomeadamente, os objectivos, os domínios de atribuição, o histórico, a evolução organizacional e o crescimento notado, ano após ano, das importantes recompensas atribuídas no quadro da Bienal de Artes organizada pela Ensa.
Nota-se, nesta obra, sob redacção precisa do actual comissário geral do concurso, o pintor Jorge Gumbe, dois artigos de fundo e apresentações do conjunto das pinturas e esculturas da colecção bem como apontamentos biográficos dos artistas recipiendários cujas obras foram adquiridas pela empresa organizadora.

Sob um design desvendado, reencontra-se, com muita felicidade, os famosos acrílicos, circundados de quadrados pictográficos “lundas” do saudoso Viteix, grande ícone da pintura angolana contemporânea, uma tela a óleo do seu filho, Vitó Teixeira, ele, igualmente, prematuramente desaparecido, e as telas resultantes de técnicas mistas do homem de letras e de cultura, Fernando Costa Andrade “Ndunduma”, que faleceu meses atrás.

Pintura "malangataniana"


Revê-se, ainda, os vanguardistas António Ole, o veterano Hildebrando de Melo, o ambicioso novinho, o excelente jeito do paisagista Telmo Vaz Pereira, as colantes composições abstractas de Luandino de Carvalho, José Zan Andrade, António Gonga e Álvaro Macieira, os caminhos labirínticos do enigmático Paulo Jazz, a integração na composição pictural pelo Van dos temíveis  “nkisi konde kongo”, agulhadas, as personagens “malangatanianas”, inspiradas visivelmente, do grande pintor moçambicano Valente Malangatana Ngwena, de Fernando Nunes, o actual conservador da colecção da Ensa, e as obras de Gabriel Quissanga.

Reanima-se perante uma das obras, maiores, da pintura sob veludo do imenso Marcos Ntangu, “Sonho de Uma Criança de Rua”, um dos raros artistas angolanos, que integra, com uma calma, transparência técnica, e um extraordinário êxito, o verdadeiro realismo nas suas composições. Ntangu, um verdadeiro sol.
Não se pode lembrar do original quadro esférico intitulado “Uma Raiz, Há Sempre”, do artista plástico, melómano, Sozinho Lopes, uma das grandes estrelas montantes da pintura angolana, do aplicado auto-retrato da talentosa Fineza Teta, da composição policromática, “Carreguemos a Cultura”, de Guilherme Mampuya e a vanguardista restituição pictural do inesperado António Camuto, na legítima “Hinosicrizacao em Época de Paz”.
As admiráveis reproduções das esculturas em madeira da colecção fazem reagir, igualmente, a exemplo de “Vuata”, do engenhoso Mayembe Meto, saído da poderosa, curvada e inspiradora, embocadura do Zaire, ou ainda “A Reflexão”, do seu estrito rival António Mbozo Toko, ele, proveniente do mítico rio oriental do Inkisi.

A colecção da Ensa nos brinda, também, com “Kuxixima” de António Sebastião, o bem nomeado, Ngola, produto de um acabamento, e de uma brunidura de grande mestre, intitulada “Mãos Transformadoras” de Amândio Vemba, “Mulher” de Eko, trabalho recordando o velho e belo artesanato dos talhadores de marfim de Angola setentrional.

Quanto a escultura, desnuda, intitulada “Berço”, do sólido Masongui Afonso (Afó), faz repensar a outra “Origem da Vida”.

Reaprecia-se a surpreendente obra, em cimento, sem título, extraordinariamente viva, de Jeremias Epalanga. Com um talento nato e uma notável frescura de inspiração, este autodidacta, natural do Lobito, produziu com esta estatueta uma verdadeira obra-mestra.
Enfim, a única fotografia da colecção, disciplina fora do concurso, e cujo autor não foi possível ser identificado e que fixou, num raro retrato a preto e branco, um adolescente tomando banho entre os destroços de um navio e de um automóvel.

Trilogia


O conjunto do campo temático da colecção realça vários aspectos da base antropológica, da evolução social e da vida política do país. Assim, reencontra-se, inevitavelmente, a atadora sublimação da mulher com, especial, a representação de, “ne mais”, “ne menos”, uma “Deusa do Amor”, a respeitável maternidade, o ardor ao trabalho dos vigorosos pescadores e dos caçadores, as poderosas coreografias tradicionais, entre outras obras um “Onoma ya Cinganji”, o membrafone sagrado, as persistentes mitologias, as ligadas, singularmente, ao embondeiro, o respeito pela fauna e flora, particularmente, pela venerável Palanca Negra, o majestoso e único antílope gigante nacional e os efeitos do longo conflito que devastou o “Quadrilátero”, nomeadamente os planaltos centrais. 

Algumas obras da colecção insistem sobre a situação dos milhares de crianças de rua, fixação de crenças hidrogónicas – com a sedutora kianda – e cosmogónicas, as máscaras e rituais híbridas, mi- antropomorfas, mi- zoomorfas, os mercados, a desesperança contemporânea, a espectacular reconstrução do país, o canto “lunzunzi”, evocando a movimentada viagem negreira transatlântica, a simbólica da trilogia e da firme afirmação a identidade cultural africana.

Suporte de promoção, de grande qualidade, das obras premiadas ou adquiridas pela ENSA, esta antologia contribuirá, sem dúvida, a une melhora interpretação dos principais eixos da renovação cultural e artística pós independência das terras da rainha Nzinga.

 

http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/uma_admiravel_retrospectiva_na_coleccao_ensa-arte