Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


02-01-2006

Meu Natal em Bissau


Frederico Silva

Bissau, 24 de Dezembro de 2005. O avião dos TACV, Linhas Aéreas de Cabo Verde, aterra em Bissau, vindo de Dakar, Senegal, onde eu chegara no dia anterior de uma Lisboa ensolaradamente enregelada.

O aeroporto de Bissalanca não apresenta o costumeiro cenário de pessoas às centenas que emoldura os aviões directamente arribados de Lisboa, sempre com os porões a rebentar de excesso. Esperam-me, com o Nissan Terrano que a Embaixada me destinou, o Sr. Sabino, motorista e, durante as férias e horas vagas, Régulo mancanha da região de Buba, e o sub-Comissário Pêgo, chefe da equipa de segurança GOE (Grupo de Operações Especiais) destacado para a Embaixada de Portugal.

O dia começa a cansar-se e é entre crescentes penumbras que sulcamos a Avenida do Aeroporto rumo ao Bairro da Ajuda, onde, no condomínio da Cooperação Portuguesa me alojo desde aqui chegado pela primeira vez, no longínquo mês de Agosto do ano passado. Em 2/3 semanas, Inch Allah, mover-me-ei de livros e bagagens para a casa que será minha nos próximos dois anos, dentro do complexo habitatio-funcional da Embaixada.

As malas são então abertas e devassadas à procura dos “mimos de natal” (chocolates, bolo-rei e doces tradicionais de Aveiro) embarcados em Lisboa. Devidamente munido, parto então para o centro da cidade, a uns 3 km, com paragem intermédia na Av. Cidade de Lisboa, onde me refamiliarizo com o meu gabinete e com os guardas em amarelo e castanho da MASA, empresa de segurança local.

Pouco tempo há a perder: no grande salão da Pensão Central, à direita da Catedral, aguarda-me o grupo que fará de família neste natal. À presidência, a Dª Berta Cabral, caboverdiana da ilha do Maio, de onde partiu há mais de cinquenta anos para não mais voltar. Chegada a Bissau para visitar uma irmã, as colinas imprevisíveis dos dias e a presença do português Américo, já falecido, conspiraram para a fazer guineense.

A Dª Berta, verdadeiro monumento vivo de Bissau, completou 82 anos, a mesma idade, como não se cansa de repetir, do Presidente português Mário Soares, ao lado de quem posa, em fotografia distintamente colocada na parede junto da larga varanda, no momento em que dele recebia a Comenda do Infante D.Henrique.

Ao lado da Pensão Central, tem início a celebração natalina dirigida pessoalmente pelos dois Bispos da Guiné-Bissau: o guinnense Dom José Camnate Na Bissiga e o italiano Dom Pedro Carlos Zilli, da Diocese de Bafatá, região Leste. Trajos endomingados, bastantes jovens, flores a esmo, grupo coral afinado, Bissau reza pelo menino.

Surpresa fantástica: todos os candeeiros públicos da Avenida Amílcar Cabral, deslizante entre o Porto de Pindjiguity e a Praça dos Mártires da Pátria (ex-Praça do Império) são ligados e um mar de luz, pelo menos assim parecendo aos olhos tão habituados ao black-out guineense, liga os dois pontos terminais pela primeira vez em muitos anos.

Ao longo da noite, não serão poucos os que, de carro ou caminhando, subirão e descerão avenida para “gozar da luz”.

Urge submeter o estômago aos ditames da tradição e sucedem-se então os pratos de bacalhau cozido, lombo assado, doces mil e vinhos à discrição. A Júlia, portuguesa vinda de Bruxelas engrossar a delegação da União Europeia, solta a aliás belíssima voz e, nos intermezzos, ouvem-se intemporais mornas na voz agradavelmente fresca da anfitriã.

Não resisto a corrigir a Dª Berta em algumas das palavras das letras que trauteia o que me vale um imediato “Então quem é cabo-verdiano aqui?”. Embora me pareça poder tomar por discutível tal apóstrofe (gosto de pensar que as minhas quase 20 idas a Cabo Verde e incondicional apreço pela caboverdianidade me conferem alguns direitos de nacionalidade) lá acedo a repetir o refrão tal qual imaginado pela digna nativa do Maio.

Trocam-se prendas, pois claro. Da minha parte brilho, possidentis benefitio, ofertando à Dª Berta uma lustrosa hi-fi Grundig trazida da terra dos tugas (cómoda alcunha aqui usada para os portugueses, tanto em matizes carinhosos como nem tanto assim).

Não termina o ágape sem devidamente serem cantados os parabéns à Marta Guerreiro, jovem lusa na Guiné dedicada a causas de desenvolvimento e solidariedade sob a bandeira de uma ONG e filha da médica fisiatra que, em Setembro último, debelou em Lisboa uma bursite calcificada que imperialmente se instalara no meu ombro, quiçá por presidencial influenza brasileira.

Bate a uma hora da manhã e o grupo natalício dispersa-se: dois cidadãos do Burkina Faso decidem recolher a casa, as portuguesas, o holandês e o peruano avançam em caminhada pela Avenida. Engreno o todo-terreno e dirijo-me, em alegre circuito pelos omnipresentes buracos das ruas, para o glorioso X-Clube, junto à Praça Che Guevara, também ela, ó espanto, profusamente iluminada.

No X, único bar “à moda europeia” de Bissau, o proprietário, Alexandre Nunes, o “Xia”, e o disc-jockey, Jorge, declararam abertas as hostilidades. Um verdadeiro corropio de gente disputa os balcões, as cadeiras e a pista ao som implacável de marrabentas, coladeras, kizombas e, dura lex sed lex, hip-hop e rock.

Esvazia-se uma última cerveja e toca-se o Nissan para o ninho, pelo meio de uma noite de 25 de Dezembro tão tépida e odorosa como só um Natal em Bissau se sabe vestir.

Frederico Silva