Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


01-06-2019

Siza Vieira. Pode-se ser feliz numa barraca e infeliz num palácio


Siza Vieira e Souto de Moura protagonizaram um dos momentos altos das Estoril Conferences 2019, numa conversa em que falaram sobre arquitetura e felicidade.

Quando Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura entram com a sua comitiva pelo átrio da Nova School of Business and Economics adentro, as atenções voltam-se na sua direção. À sua passagem, há quem discuta se cheiram a tabaco ou a charuto – no ambiente branco e ‘higienizado’ do edifício, o fumo que ainda trazem agarrado às roupas não passa despercebido.

Quem faz as honras da casa e os recebe no palco é Vítor Carvalho Araújo, o anfitrião ideal, uma vez que se trata nem mais nem menos do que o autor do edifício que acolhe as Estoril Conferences, que ali decorreram de 27 a 29 de maio. No seu discurso de apresentações e de boas-vindas, Carvalho Araújo cita o mestre dos mestres, Fernando Távora: “A boa arquitetura é onde as pessoas se sentem bem, o resto são cantigas”.

O filósofo suíço Alain de Botton forjou, num livro de 2008, o conceito de “arquitetura da felicidade”. Ali, o autor refletia sobre como os espaços influenciam os comportamentos e perguntava: as pessoas que vivem em ambientes bonitos tornam-se melhores e mais felizes?

Esse é também um dos temas centrais desta conferência, que aliás tem como cenário uma escola que parece ter sido pensada para fazer a felicidade de quem nela estuda. Na grande praça transformada em auditório, saturada de luz natural apesar de a cobertura se encontrar corrida por causa da ventania lá fora, a conversa começa de forma otimista.

 

Siza Vieira “Acho que seria um cliente muito desagradável”

Eduarda Lobato de Faria (professora na Faculdade da UL), a moderadora, interpela Siza: “Podemos falar de elementos de felicidade em arquitetura, como a luz, a água, janelas, materiais naturais, como a pedra ou a madeira, por exemplo?”

Trabalhamos com todos esses elementos. Quando se pensa na luz, pensa-se no espaço, estão todos relacionados. E o que resume os objetivos da arquitetura, através de todos estes elementos, é a beleza. A beleza sintetiza todos os meios de conseguir o ótimo na arquitetura... Mas depois falando de felicidade, ou seja, falando no utente, e escolhendo o tema da casa, que é o que mais fazem os arquitetos, depende de quem vai viver, do temperamento, da sua experiência de vida, da sua cultura, e por aí fora. De maneira que o servir, no sentido de criar boas condições para aquilo que projetamos, significa diálogo, quando é possível. Quando fazemos uma casa para uma família, conversamos com o pai, com a mãe, com os filhos, com os sogros, e por aí fora. E vamos encontrando quase os desejos e o que faz aquelas pessoas confortáveis na casa que temos de projetar. Isto difere muito de um para outro. Por exemplo, fiz uma casa em que a senhora o que mais gostava era a penumbra. Ela era escritora, queria ter um espaço de penumbra, com uma luz superior, velada, não forte; e lembro-me de outros casos em que a exigência era ‘queremos muita luz’, sobretudo se se trata de uma casa na Holanda ou na Alemanha. Aí as críticas eram sempre acerca da tentativa e de um hábito português de criar variações desde a muita luz até à penumbra e até à alcova, que é uma tradição árabe. As casas árabes têm isso – a variação desde sol, pátio, até à penumbra. De maneira que a chave para este, como para qualquer outro problema da arquitetura, está no diálogo. A menos que estejamos a fazer uma casa para nós próprios, o que eu nunca fiz, porque acho que seria um cliente muito desagradável.

Souto de Moura “Não tenho problema de dizer que sou egoísta a fazer arquitetura”

Antes de falar de felicidade é preciso saber que felicidade. Primeiro, a felicidade do autor, que é o que me interessa. Eu tenho de estar feliz para poder promover a felicidade dos outros. Se estiver aborrecido e infeliz nunca hei-de de fazer nada decente e que promova a felicidade – neste caso, do cliente. Portanto a primeira questão é eu ficar agradado com aquilo que faço. Se calhar, ao contrário do Siza, eu tenho que imaginar que a casa é para mim. Não tenho nenhum ponto de censura, de crítica, porque não conheço o cliente. Não sei como é que ele dorme, como é que toma banho. Portanto tenho de me imaginar no quarto dele, a fazer a barba – que só faço de vez em quando. Uso o cliente como uma espécie de heterónimo. A arquitetura é uma arte social, construímos um projeto juntamente com o cliente, com os engenheiros, com as câmaras. Se o coletivo adere, a obra deixa de ser minha, do arquiteto, e passa a ser o tal coletivo. Por exemplo, eu fiz duas obras grandes – o Metro do Porto não é o Metro do Souto Moura, é o Metro do Porto, é da cidade. E o estádio de Braga. Também não é meu. O coletivo aderiu e nessa altura o autor fica ainda mais feliz – não é uma felicidade estonteante, é step by step. Mas tudo começa por nós. Não tenho problema de dizer que sou egoísta a fazer arquitetura. Se não, não chego lá..

 

Siza Vieira “Toda a gente pode falar de arquitetura, não é nada de secreto”

Depois de evocar os seus projetos na Holanda, na Alemanha e em Cabo Verde, Eduarda Lobato Faria pergunta a Siza: “Quando projeta para populações mais desfavorecidas, qual a sua maior preocupação, o que não pode faltar para garantir a qualidade de vida e o bem-estar destas pessoas?

Se for possível, conhecê-las. Nos exemplos que menciona, no Sal o programa propunha um diálogo com as populações, com os futuros utentes. Aí havia duas condições que são fundamentais. Uma é que se sabia para quem eram as casas, não era projetado não se sabe para quem, se é para vender, se é para alugar, etc. E a outra é que era pedida uma participação da parte dos habitantes. Participação que se desenvolveu durante pouco tempo, mas com muita intensidade. Verifiquei que pensando de início que era para discutir a casa, ‘o que querem da casa, como é que a cozinha liga com a sala de estar’, ou coisas deste tipo, ao fim de um ano a discussão era a cidade. Isso confirmou a convicção de que toda a gente pode falar sobre arquitetura, não é nada de secreto e só ao alcance de arquitetos, ou de quem tem uma formação especializada. O mesmo aconteceu em Haia e em Berlim, mas na base desses trabalhos estava outra coisa, que era já o problema dos imigrantes. Em Berlim tal como em Haia trabalhei em zonas de imigrantes, onde havia conflitos. Era um programa do governo no sentido do diálogo, para conseguir encontrar um consenso. Mas era já o problema dos imigrantes, que tinham sido concentrados num ponto da cidade, e havia choque. Em Veneza não era bem o caso, era na Giudecca, uma parte menos monumental, menos classificada, mas onde vive ainda o que há de população de Veneza. É uma área menos visitada pelos turistas mas com muito caráter. Como acontece em geral em Itália, tudo começa a demorar muito tempo. Vamos em 40 anos e ainda não está pronto – está metade pronto.

 

Souto Moura “O Partenon é o máximo de felicidade em arquitetura”

Daquilo que eu conheço, o máximo de felicidade que se pode atingir na arquitetura é o Partenon. Tem tudo. O Partenon domina um território, uma geografia. É o centro de uma geografia. Como é que um tipo, um escultor, Fídias, conseguiu no fundo dominar uma região só com um objeto? Segundo, como objeto em si é de uma beleza inexcedível. O conjunto da acrópole e do Partenon é uma simbiose única. Quanto a mim nunca se conseguiu nada parecido. A maneira como nós vemos os objetos hoje em dia, como os automóveis são fotografados, os modelos são fotografados – tudo a três quartos, nunca é de frente nem de lado – é dada pela entrada na acrópole com o Partenon a [um ângulo de] 30 e tal graus. E depois há a própria imagem que ficou ao longo dos séculos e que serviu como um ícone para fazer mobiliário. Há imensos objetos feitos com base no Partenon. Inclusivamente o radiador do Rolls Royce é tirado do Partenon. Um arquiteto que faz isto, desde o Rolls Royce até ao domínio de todo o território de Atenas, é o máximo de felicidade. Mas é o dele, do Fídias. O meu máximo de felicidade foi passageiro – o estádio do Braga foi o projeto que mais gostei de fazer. Quando percebi que estava a ser alterado, destruído, e que não me pagaram, aí tive de mudar a agulha, e realmente o projeto em que me sinto mais satisfeito – o outro nem quero lembrar – é o do Metro do Porto. Sinto-me orgulhoso de ter feito um serviço social que alterou a vida das pessoas – a felicidade dos outros nesse caso também é a minha. Têm melhor acesso ao trabalho, melhor acesso à habitação, chegam mais cedo a casa, nos intervalos podem ir mais rapidamente ao supermercado, podem ler nos percursos. São 70 quilómetros, não foram muito caros, foram bem disciplinados, e fico satisfeito por ver esse coletivo a viver melhor. Mas não há nada como o Partenon.

 

Siza Vieira “Estive há pouco tempo no Bonjour Tristesse e não encontrei lá tristeza nenhuma”

Dirigindo-se a Siza, a moderadora traz à colação o icónico edifício de Berlim a que chamaram Bonjour Tristesse: “Alguma vez imaginou que viria a ser conhecido como ‘espelho da melancolia da vida urbana’, como tantas vezes é referido?”.

Não imaginei e não é verdade, não é assim. Quando acabei esse edifício em Berlim, li no jornal da Ordem dos Arquitetos uma legenda de uma fotografia desse edifício que dizia: ‘O edifício mais estúpido de Berlim’. Fiquei tranquilo porque olhando à volta pensei: ‘Pode ser estúpido, mas o mais estúpido não é com certeza’. Como referi na resposta anterior, o projeto surgiu no contexto do IBA, um programa internacional com concursos e convites a arquitetos de todo o mundo. Eu trabalhei numa secção a que se chamava a IBA pobre, depois havia outra que era a IBA rica. Nesta segunda a ideia era um pouco ainda na sequência da tábua rasa – terrenos livres, construir nova arquitetura. Na chamada IBA pobre a ideia era do diálogo com a população, maioritariamente turca. Naquelas ruas a música era turca, os restaurantes eram turcos, era tudo assim. Em Berlim, contou-me na altura o diretor deste programa, houve mais destruição com a reconstrução do pós-guerra do que propriamente durante a guerra. Houve um período em que era tudo novo, o homem era novo, a casa era nova, a cidade nova, mas passado algum tempo esta ânsia de novidade amainou. A construção do projeto foi feita num contexto de reação aos imigrantes turcos. Havia ainda em Berlim 100 mil turcos mas já tinha acabado no essencial a reconstrução, e portanto havia que corrê-los, já não eram tão necessários. Esse nome Bonjour Tristesse foi colocado exatamente por um grupo anti-imigrantes. Se reparar, Bonjour Tristesse está escrito com os SS ao contrário, para simular que a população ignorante escrevia com erros. Mas esquecendo uma questão de fundo: é que, ignorante ou não, a população imigrante não conhecia o romance [de Françoise Sagan]. Estive lá há pouco tempo, entrei nas casas – ainda há turcos, mas muito menos – e muitos estavam preocupados com a iminência de serem expulsos pela subida das rendas. E conversei com outros que estavam muito satisfeitos. Não encontrei lá tristeza nenhuma, a não ser a preocupação que referi.

 

Souto de Moura “Se fizermos uma casa que agrade ao cliente não entramos para a história da arquitetura”

“Toda a boa arquitetura gera qualidade de vida e felicidade?”, pergunta Eduarda Lobato de Faria a Souto de Moura..

Acho que não. Se formos a ver, as casas que fazem parte da história da arquitetura não estão habitadas. Porquê? Porque é impossível entrar para a história da arquitetura e agradar ao cliente. Os critérios de que o arquiteto se serve para fazer uma arquitetura universal são critérios estéticos altíssimos, que colidem muitas vezes, ou quase sempre, com os interesses do cliente. Portanto deduz-se que, passado uns tempos, os clientes das casas da história da arquitetura abandonam as casas e elas ficam vazias. E passam a entrar para a museologia. Portanto a felicidade do arquiteto, que entrou para a história da arquitetura, deve ser enorme. A felicidade do cliente deve ser horrível, porque desaparece. Inclusivamente uns suicidam-se, como na casa da cascata do Wright. Na [residência] Farnsworth do Mies Van der Rohe, a senhora, que tinha uma paixão pelo Mies van der Rohe, pôs-lhe um processo em tribunal depois de ter estado lá um ano ou dois. Portanto a felicidade não tem nada a ver com isso. Há dois tipos de felicidade: a felicidade coletiva – a história da arquitetura fica mais enriquecida quando esse objeto é reconhecido, o arquiteto fica todo contente porque entrou para a história da arquitetura, e o cliente está-se a marimbar para a história da arquitetura e quer uma casa que lhe agrade. O que é certo é que se nós fizermos uma casa que lhe agrade não entramos para a história da arquitetura. Se calhar vou perder imensos clientes depois desta conversa – mas a questão é mesmo essa. Eu trabalhei com o Siza no Sal e havia uma corrente mais maoísta que dizia que nós devíamos ser a mão do povo. Nós emprestávamos a mão e eles explicavam como eram as casas. Era geralmente um desastre. Nós hesitávamos muito, meditávamos sobre como haviam de ser as casas. Eles nervosos – e com razão, porque viviam em condições péssimas –, diziam-nos: ‘Ouçam lá, vocês porque é que não fazem as casas? Estão a pensar em quê? Vocês vivem bem, não vivem? São ricos. Então façam as casas iguais às vossas’. Tinham toda a razão. E diziam: ‘Se quiserem ou fazem baixinhas de um piso, como o bairro da polícia, com um quintal à frente e uma portinha, ou então façam torres, nós vivemos muito bem em torres’. Eles têm razão – não me interessa é os critérios que eles expunham. Aí é que está a dificuldade. Precisamos do cliente, mas temos de o superar, se não é construção e não arquitetura. A arquitetura tem de ter uma mais-valia qualquer.

 

Siza Vieira “Pode-se ser muito feliz numa barraca”

Poderá a arquitetura trazer felicidade às pessoas e ajudar a combater as desigualdades do mundo? Siza duvida.

Do mundo é muito vasto e muito ambicioso. Porque há zonas muito pobres e zonas melhores, e dentro de cada uma dessas zonas melhores há desigualdades. E nota-se em toda a Europa uma diminuição na preocupação de construir habitação dita social. A primeira coisa mais urgente é haver habitação para toda a gente, o famoso direito à habitação. Depois, de que maneira? Depende da vida das pessoas. As pessoas têm altos e baixos na sua vida. Acredito que uma pessoa seja muito feliz numa casa durante um ano e no ano seguinte se sinta profundamente infeliz. A arquitetura não tem a força de condicionar os problemas de cada um. Uma pessoa pode-se sentir felicíssima numa barraca e pode-se sentir na maior infelicidade num palácio.

 

Souto de Moura “Dá-me gozo ver que meio milhão de pessoas põe a mão no corrimão que eu desenhei”

O Estádio de Braga foi o projeto que me deu mais gosto fazer, o projeto em que me senti mais cumprimentado – tão cumprimentado que até me chamavam engenheiro. Agora já não vou, porque estou em tribunal e tenho medo de ir, mas quando ia a Braga as pessoas todas pediam-me para tirar fotografias com os meninos – ‘engenheiro, tire uma fotografia com o meu filho’ – e eu lá tirava. Depois as escolas em Braga mandavam-me exercícios feitos pelos alunos. Tenho uma coleção de desenhos maravilhosos – os estádios [bancadas] agora são bastante inclinados e a ideia que as crianças têm é que eles estão quase a cair. É uma coisa maravilhosa. Fizeram o Lego do estádio, fizeram uma rulote com as duas tribunas – quando vejo isto... Afinal tantas dificuldades, sofrimentos, não sabia se ia ser inaugurado, desvios de tempo, de dinheiro, depois quando acontece a inauguração, os cumprimentos, ia tudo feliz. O que é certo é que o Braga, que passava a vida a discutir se ia descer de divisão, começou a ficar sempre em terceiro e quarto lugar. Não sei se foi o estádio que fez isso, mas alguma coisa aconteceu. Não foi só coincidência. Agora tenho más recordações do estádio. Quando vou a Braga sofro imenso a ver elevadores que não foram feitos por mim, feitos por engenheiros, autênticos monstros, lajes partidas para fazer bares para os VIPs, parques de estacionamento VIP clandestinos, um horror, não vale a pena descrever isso.

O Metro agora foi ampliado e chamaram os mesmos arquitetos, que é uma coisa felicíssima sermos reconhecidos, até porque em Portugal não existem direitos de autor em arquitetura. Se pintarem tudo de violeta e de cor-de-rosa e partirem as varandas ninguém diz nada e vocês não podem reclamar. O facto de chamarem outra vez a mim e ao Siza para fazermos mais quatro estações para ampliação da rede, é algo que ultrapassa o nosso prazer pessoal, temos o sentimento do serviço a toda uma cidade, toda uma região – neste caso à volta de um milhão de pessoas que usam o Metro no Porto. Dá-me gozo ver que para aí meio milhão de pessoas põe a mão no corrimão que eu desenhei. Obriga-me a ter um rigor, não pode abanar, nem ter insegurança, nem ser frio. É um exercício de que eu gostei imenso e continuo a gostar: sentir-me responsável por aquela felicidade das pessoas chegarem a tempo ao trabalho e a casa.

 

Siza Vieira “Há muitas razões de infelicidade ligadas à arquitetura”

Muitos dos projetos geram infelicidade, sobretudo, porque correm mal. No de Berlim, por ser considerado o mais estúpido. Ainda assim devo dizer que não me senti muito infeliz com isso. Mas depois há projetos que não andam, não vem financiamento, o arquiteto empenhou-se profundamente e depois não se realiza, o sistema de concursos que torna o acesso ao projeto uma espécie de roleta russa. Há muitas razões de infelicidade ligadas à prática da arquitetura. Mas, falando de felicidade, do ponto de vista da habitação, lembro-me por exemplo do projeto da Malagueira em Évora, um projeto para 1200 habitações. O projeto percorreu grandes dificuldades, mas o essencial foi realizado para cooperativas.. Teve muitos ataques e ao mesmo tempo teve o apoio – não desde o princípio, mas desde que houve os primeiros contactos e o conhecimento mútuo – da população que foi para aí viver.. Era também um projeto em que se conhecia quem ia para aquelas casas, era possível haver um contacto, que para ser aberto chega a ser em certos momentos conflituoso, mas a insistência no diálogo leva à criação de convicções, de todas as partes – e informa o projeto e informa as populações. É esse o projeto de que guardo melhores recordações.

 

Souto de Moura “Nunca a repressão foi motivo para que não se fizessem as coisas bem feitas”

Poderá a supervisão e pressão do manager afetar a criatividade do arquiteto e comprometer a qualidade da arquitetura? A questão é suscitada por um jovem arquiteto da assistência que trabalha na Suíça.

Não é agradável, para dizer a verdade, termos uma espécie de guarda-costas, um pide que anda sempre atrás com as leis, com os investimentos, ‘você está a gastar demais’, ‘você está a derrapar nos prazos’. O que é certo é que sem isso as obras não se fazem. É preciso essa gestão. No meu entender é desagradável, mas nunca a repressão nas artes – não sei se a arquitetura é arte ou não – foi motivo para que não se fizessem as coisas como devem ser feitas. Quando foi o 25 de Abril, toda a gente pensava que iam aparecer obras maravilhosas reprimidas pelo Estado Novo, pelo Estado fascista. Não apareceu nada. Não foi por acaso que alguns dos maiores poetas e artistas do mundo – como Fernando Pessoa, Herberto Helder e Almada Negreiros – surgiram nesse período. Não deixou de haver história da arte, história da literatura, da pintura e da escultura. Muitas vezes até essa pressão, que mói, contribui para um apuramento e um sacrifício que faz com que haja critérios de maior qualidade. É um mal necessário.

 

Siza Vieira “Costumo dizer que o dono da obra é o primeiro arquiteto”

A ação do manager depende de quem é e como é o manager. Pode ser um apoio grande à complexidade inerente a qualquer projeto e pode ser um empecilho tremendo. Tive a oportunidade de trabalhar na Suíça e correu muito bem, e havia todos esses sistemas de controlo, de divisão de trabalho, etc. E acho que correu bem porque o dono da obra queria que corresse bem. O dono da obra é fundamental na equipe que leva a cabo – eu costumo sempre chamar-lhe o primeiro arquiteto. Porque se o dono da obra quer qualidade, pode-se obter qualidade. Se não quer, se quer só cortar uma fita ou coisa que o valha, não se chega lá. Na Suíça houve uma boa experiência, inclusivamente a determinada altura não estava a correr muito bem e a manager foi afastada. [Voltando-se para Souto de Moura] Por acaso parece-me que ela caiu num projeto seu... mas eu não tenho culpa nenhuma!

 

Siza e a torre de Nova Iorque “É um edifício muito esbelto que se destaca contra o de trás”

É uma surpresa com que eu já não contava. Acho que já não estou com idade de fazer uma torre em altura, deve ser por isso que escolheram uma torre não muito grande – tem 38 pisos, para Nova Iorque é nada. Mas tive muita sorte porque o terreno onde está a torre é pequeno, tem uma profundidade muito pequena, portanto, sendo baixo – àquela escala – o edifício é muito esbelto e destaca-se contra um edifício por trás muito maior, preto, e da mesma altura mas uma extensão muito grande. A primeira coisa que aconteceu foi eu não perceber como é que em Nova Iorque era possível construir com tanta proximidade do vizinho. Sabia que não era de maneira nenhuma a lei portuguesa, porque então Nova Iorque não existia. Não compreendi muito bem qual é a regulamentação, e também não quis compreender porque me entregaram tudo já preparado: a altura era tal, o afastamento era tal, todas as regras me foram dadas de mão beijada. Depois foi o habitual, o normal trabalho de uma equipa, com projetistas de Nova Iorque, muito competentes, muito capazes, um engenheiro fantástico, já tinha feito não sei quantas torres com o dobro ou mais da altura desta. Correu muito bem. Depois foi assistir àquela relação entre o que é o projeto e o que é o mercado, preparar o projeto para ter a flexibilidade. Coisas deste tipo: neste piso X apartamentos eram T2, mas depois diziam que afinal era necessário mais T3 do que T2. Isso punha em questão o aspeto exterior do edifício, o ritmo das aberturas. A solução que procurei – e acho que encontrei – foi de fixar, em diálogo com o engenheiro, a estrutura do edifício – as verticais que aparecem –, e estabelecer entre essas verticais, entre esses pilares, um sistema de caixilharia com perfis muito finos. Variando o programa, a variação nessa caixilharia muito delicada até era favorável em contraste ao rigor do ritmo imposto pela grande estrutura.

 

 

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