Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


19-10-2019

ESPANHA - NEM UNA, NEM GRANDE, NEM LIVRE por José Pacheco Pereira


 

«La libertad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieron los cielos; con ella no pueden igualarse los tesoros que encierran la tierra y el mar: por la libertad, así como por la honra, se puede y debe aventurar la vida. (Cervantes, Don Quijote)

 

Este é um artigo indignado e como eu sou de raras indignações podem parar de o ler aqui. Nestas alturas estou-me positivamente “marimbando” – sem desculpa pelo plebeísmo porque preciso da sua força – para as nossas tricas nacionais, e para o gigantesco espectáculo de hipocrisia que é a União Europeia, capaz de se mobilizar pelas mais minoritárias causas da moda, mas indiferente ao que se passa na Catalunha.

 

Como cá. São todos muito liberais, todos muito preocupados pelas liberdades (económicas), todos muito tradicionais, alguns muito revoltados com a repressão (na Venezuela ou em Cuba), e chega-se à Catalunha e ficam todos muito indignados com a “violência” na rua, todos muito legalistas, todos indiferentes a um processo político persecutório, todos olhando para o lado para não verem as multidões na rua, e acima de tudo para não verem as faces dessa multidão. Para não verem que eles são iguais a nós, velhos, mulheres, donas de casa, trabalhadores, jovens casais, moradores, professores, funcionários, gente LGBT, gente conservadora, gente cujos pais e avós conheceram a guerra civil e guardam a memória dos fuzilamentos de dirigentes catalães ou dos movimentos estudantis e operários que confrontaram o franquismo numa Catalunha mais irridenta do que muitas partes de Espanha. Eles olham para a rua e vêem os capuzes, e como o El País e a imprensa portuguesa que o segue, estão muito preocupados com a Constituição e com a lei, com revoltas, golpes de estado, revoluções, sedições, separatismo, independentismo. O que não vêem ou admitem é que possa haver uma vontade, uma determinação, uma razão pela independência da maioria dos catalães.

 

O problema é que na rua catalã não estão fascistas de pata ao alto, nem gente a marchar detrás de variantes da suástica, ou de runas nórdicas, nem a gritar contra os refugiados, nem a atacar mesquitas e sinagogas – está gente como nós. Mas o mesmo não se pode dizer das setas da Falange, nem da bandeira espanhola transformada no estandarte da “España, una, grande y libre” do franquismo, que recrudesceram nos dias de hoje em resposta ao independentismo catalão, numa causa que já mereceu em Espanha muitos milhares de mortos.

 

Na verdade, os nossos anti-catalães, parte do PS e quase toda a direita, acabam por ser muito amigos de uma das mais sinistras tradições do país ao nosso lado, o espanholismo de Castela, historicamente muito agressivo, tradicional inimigo de Portugal, a pátria que supostamente lhes enche o peito antes de chegarem a Bruxelas, onde desincha. O espanholismo que encontrou os seus melhores porta-vozes em partidos de extrema-direita como o Vox, que Nuno Melo branqueou, ou num PP minado pela corrupção, ou na sua versão modernizada o Ciudadanos, o partido que o CDS gostaria de ser quando for grande. E em Espanha nesse partido que nem é socialista, nem operário, mas que agora é muito espanhol e que aceitou ser chantageado pelos herdeiros de Francisco Franco e que não teve a coragem de evitar o julgamento político dos independentistas.

 

Podem não ser favoráveis à independência catalã, não podem ser indiferentes aos presos políticos e às suas sentenças punitivas. E só por ironia é que se vê ficarem muito ofendidos com a comparação entre Hong Kong e Barcelona, eles que não mexeram uma palha sobre Hong Kong porque o seu anticomunismo pára na EDP e na REN, e não têm muita autoridade para fazer essa distinção. O mesmo com a “progressiva” e de “referência” comunicação social espanhola cuja agressividade anti-catalã é repulsiva. E o mesmo para a portuguesa.

 

E repetem-se argumentos absurdos. O argumento contra o referendo então é o de máxima hipocrisia. O referendo não valeu porque correu sem qualquer controlo. Não é inteiramente verdade, mas é natural que não tenha ocorrido em condições ideais com a polícia a roubar as urnas, a ocupar lugares de votação e a bater nos que queriam votar. Mas, se o problema foram as condições do referendo, então que se faça outro em condições de liberdade e paz civil. Resposta: não, não, nunca, jamais em tempo algum.

 

Eu sou um grande admirador de Espanha, da sua cultura, das suas gentes. Li o Quixote mais de que uma vez e não é por falta de vontade que não o leio outra vez. Tudo o que de grande existe na história da literatura e da arte está nesse livro, de Ulisses a Leopold Bloom. O país que “deu” este livro merece tudo, menos muita da sua política. Não é um país de história fácil, como se viu na matança da guerra civil, de que o actual conflito é demasiado herdeiro. Em política sempre foi dado a pouca tolerância e a muito sangue, mas os seus grandes homens e mulheres nos últimos 200 anos foram-no exactamente por contrariarem isso. Unamuno é um exemplo.

 

É também por admiração e estima por Espanha que escrevo isto.» (José Pacheco Pereira)

 

A Espanha nem una nem grande nem livre

 

   
 

A Espanha nem una nem grande nem livre

José Pacheco Pereira

O país que “deu” o Quixote merece tudo, menos muita da sua política. É também por admiração e estima por Espanha...