Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


24-01-2009

Esaú Dinis- A propósito de O PECADO MAIOR DE ABEL-Inácio R. de Andrade


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Por:

ESAÚ DINIS

 

 

“O suporte da identidade é o corpo que habitamos”

Eduardo Prado Coelho. Público, 2003.11.28

 

“A identidade não se descobre, constrói-se. Essa é a parte difícil.”

Alexandre Quintanilha. Notícias Magazine (D.N.) 200311.30

 

O homem Negro é religioso, simbólico, rítmico, oral, vital, cósmico, comunitário

Fernando Neves, “As Colónias Portuguesas e o o seu Futuro”, 1974, p.64-73

 

 

Quando recebi a notícia de que vinha a caminho novo romance de Inácio Rebelo de Andrade, fixei o título e o propósito do autor o centrar nas questões de identidade, que não as de racismo, tema já abordado em livros anteriores, designadamente em A Mulata do Engenheiro.

 

Sem outros elementos, presumi que O Pecado Maior de Abel faria uma qualquer aproximação à narração bíblica da morte de Abel por Caim.

 

Imaginava que o autor se inspirara nesse primeiro fratricídio, narrado como episódio simbólico entre o mito da Criação e o da Culpa, a que se seguiu o mito do Dilúvio tomado como tentativa gorada de lavagem do Mal, que precoce e rapidamente grassara por toda a humanidade.

 

Estava, por isso, curioso em descobrir o modo como o autor faria a ligação entre o Abel do romance e o Abel pastor que o irmão matara por despeito, com base no facto de Deus preferir as oferendas de primogénitos de rebanho em desprimor dos frutos da terra do lavrador Caim, preferência que, diga-se de passagem, acabou por ter cruéis consequências.

 

Com o livro nas mãos, verifiquei que a pista era falsa, ao menos numa primeira leitura. O personagem Abel nada tinha a ver com o segundo filho de Adão e Eva.

 

A partir daí, a temática da identidade assumiu o centro da abordagem, deixando por isso a questão dos pecados de Abel para a parte final. O autor é muito claro nas “Palavras Prévias”: “Este livro é sobre o sentimento de pertença, ou sobre a ausência dele (…) essa mágoa, essa frustração (importa pouco o nome) …” (7 e 8).

 

Abrindo directamente o pano sobre a identidade, poderia começar por um tratamento teórico, recorrendo a alguns autores e definições e depois cotejar com a narrativa.

 

Contudo, dado que o propósito é o de apresentar o livro, irei directo aos cenários e descrições de que o autor se serve para revelar as personagens principais, Abel e Ernesto, o colono e o seu filho, nascido da relação entre o “comerciante do mato”, oriundo de Vila Nova de Cerveira e Nhemba, que aparecera na loja, com o cacimbo, “tão linda e auspiciosa como uma flor que desabrocha”, “rosto oval, olhos pestanudos, a boca entreaberta, o nariz pouco achatado, a pele negra das faces, brilhando como uma gema magnífica”, “coxas firmes que sobressaíam sob o pano de pintado, sobretudo os seios pontiagudos, toda ela era ali uma promessa de mulher que estava para ser”, “tão nova quase uma criança”, cafeco mesmo. (47e 48).

 

Suspendamos o entusiasmo com a riqueza descritiva do autor, já que quero propor-vos uma leitura do romance como obra centrada no colono a partir do “comerciante do mato”, e também, como prolongamento natural, entrando na identidade do filho mulato, que, apesar de criado distante do quimbo maternal e de ter crescido longe, em Portugal, sente que, de alguma forma, pertence a outras entranhas e céus, ou talvez a nenhures, ficando amputado do melhor de dois mundos, em vez de os somar.

 

Dado que insisto na tese de que a originalidade deste romance se centra à volta do colono e do filho, peço licença para ouvirmos um longo e belo poema de Tomaz Vieira da Cruz, respeitado precursor da literatura angolana, o qual, nascido em Constância, no ano de 1900, andava por Angola ao tempo destes acontecimentos, e terá sido em 1951 que publicou, em Cazumbi, o texto denominado precisamente Colono (FERREIRA:43).

 

Poema COLONO de Tomaz Vieira da Cruz (Constância 1900-1960 Lisboa), in: Cazumbi – Poesia de Angola 1951, ver [FERREIRA:43]

 

A terra que lhe cobriu o rosto

E lhe beijou o último sorriso,

Foi ele o primeiro homem que a pisou!

 

Ele venceu a terra que o venceu.

Ele construiu a casa onde viveu …

Ele desbravou a terra heroicamente,

Sem um temor, sem uma hesitação,

— terra fecunda que lhe deu o pão

E lhe floriu a mesa de tacula …

Mas quando olhava a imagem pequenina

— Senhora da Boa Viagem –

Que a mãe lhe pôs ao peito à hora da partida,

O Homem forte chorava …

 

Foi arquitecto e foi também pintor,

porque pintou de verde a sua esperança …

 

Esculpiu na própria alma um sonho enorme,

por isso foi também grande escultor!

 

Foi genial artista e mal sabia ler!

O que aprendeu foi Deus que o ensinou,

lá na floresta virgem, imensa catedral,

onde tanta vez ajoelhou!

 

Viveu a vida inteira olhando o céu,

a contar as noites

da lua nova à lua cheia.

E o sol do meio dia lhe queimou a pele,

o corpo todo e até a alma pura.

Foi médico na doença que o matou,

ao homem ignorado e primitivo

que derrubou bravios matagais

e junto deles caiu

como caem árvores sacrificadas

à abundância dos frutos que criaram …

 

E a primeira mulher que amou e quis

foi sua inteiramente …

E era negra e bela, tal o seu destino!

 

E ela o acompanhou

como a mais funda raiz

acompanha a flor de altura

que perfuma as mãos cruéis

de quem a arrancou.

 

…………………………………………

 

Foi o primeiro em tudo,

na dor e no Amor,

na honra e na Saudade

porque nunca mais voltou …

 

E nas terras de toda a gente

e de ninguém …

— estranha criatura! -

 

… foi sua também

a primeira sepultura!

 

Será uma visão romanceada da realidade e certamente limitada pelo paternalismo colonial, mas tem a honestidade de quem fez o esforço de inserção no mundo africano, o que é reconhecido, hoje, pela União dos Escritores Angolanos, aceitando este juízo de Manuel Ferreira. (ver nota 1). Eu próprio quando andei, no final de 1968, pelos quimbos da Huíla, não muito longe do centro geográfico deste romance, acompanhando uma equipa da Missão de Inquéritos Agrícolas de Angola, com o engenheiro Eduardo Cruz de Carvalho e o técnico agrícola Júlio Morais, (mestiço, mais tarde doutorado por Paris), ouvi a um rebanho de filhos de um colono português e de uma bela negra da Chibia: Vêm aí, os brancos!, como se fôramos uma visão estranha à sua esquecida origem portuguesa, tal a inserção do pai, e de todos, no meio africano, tisnados pelo sol de África e pela labuta no campo e no pastoreio.

 

No entanto, vamos contrapor duas outras descrições de colono relatadas pelo autor. A primeira refere-se ao comércio de mato do primeiro sogro de Abel de quem vai aprender a arte e as artimanhas, até a ultrapassar o original. Ouçamos e olhemos desde já o onde:

 

O Andulo, em 1942, “continuava um burgo incipiente, cuja actividade principal se devia a algumas casas de comércio, onde os brancos negociavam com os negros panos de pintado, espiras de tabaco, pexelim para conduto, petróleo para iluminação, uma variedade de bugigangas, carros de linhas e talheres de estanho; onde aviavam vinho, que serviam ao balcão de manhã à noite. Cada loja era uma espécie de armazém mal iluminado, onde o recheio se acumulava sem nenhum critério. Na penumbra habitual, só ao fim de alguns segundos após passar a porta de entrada, uma pessoa ficava a saber onde estava e era capaz de dar conta daquilo que havia aí. Um cheiro compósito evolava-se do tabaco, do pexelim, do petróleo e do vinho; quase sem fuga para o exterior, tomava conta da quadra inteira, empestando o ar com a sua presença enjoativa”. (17 e 18).

 

Agora, como quem observa de fora, vejamos segunda cena, em toda a sua crueza e com os malabarismos do personagem Abel:

 

“As mulheres carregavam do quimbo as quindas na cabeça, que vinham cheias até cima: de milho, feijão ou mandioca, conforme a época do ano. Entravam pela porta estreita e iam pôr a carga na plataforma da balança decimal. Abel pegava nos pesos, passava-os de mão para mão, ora para um lado ora para outro, atirava-os ao ar, enquanto tentava calcular qual ou quais devia pôr no prato suspenso do travessão. De repente, em menos de dois segundos, como num passe de mágica, escolhia o peso, punha-o no prato, retira-o logo e anunciava:

— São vinte quilos, portanto cinco angolares.

A negra franzia a testa, manifestando a sua dúvida e o seu desalento:

— Cinco só?! Num pode…

— Pode, pode. Não discutas. São cinco angolares e são mesmo!” (23 e 24)

 

É verdade que, em 1948, a respeito da adolescente Nhemba, levada pela mão da mãe à loja, aconteceu diferentemente. Dessa vez, Abel deu bastante mais mas era uma forma encapotada, ou talvez não, de antecipar um avanço, não dito, do alambamento informal, pela carne jovem e apetecível que cobiçara.

 

Antes de prosseguirmos, podemos acrescentar que, tal como o primeiro, o segundo sogro branco de Abel também foi comerciante em Luanda, em plena baixa, no Largo das Ingombotas, antes de ter passado a proprietário de uma plantação de café nos arredores de Carmona. (145). Vale a pena escutá-lo da própria boca: “Com menos de duas dúzias de negros, alguns machados e enxadas, muito trabalho e muito suor, eu desbravei a mata, preparei o terreno, semeei os viveiros e plantei as mudas” (146). Com o dinheiro a correr e a guerra a sangrar no Norte, refugiou-se como o genro, no Puto, aonde, embora com os atrasos que Salazar sabia controlar, acabava por chegar a autorização de transferência cambial, com o dinheirama do café. (178)

 

A própria Nhemba, que “nascera realmente no mato, vivera lá muito tempo, podia continuar matumba, mas era inteligente e aprendera as coisas depressa. E aprendeu. Para agradar ao seu tchindér e lhe provar quanto defendia os interesses da casa, aprendeu até a baptizar o vinho com água, a pesar de menos quando comprava e de mais quando vendia”. (84)

 

Como fica claro colonos há muitos e aqui estão vários, sabendo que podíamos acrescentar outros, como por exemplo, o caso dos colonatos oficiais, referindo a título de exemplo o do Colonato da Cela, nascido em 1952, a que não faltavam os carros de bois, a cevada e as batatas dos aldeamentos transmontanos, as vacas, leite queijo e as festas do Espírito Santo nos aldeamentos açorianos, onde estavam as famílias que, no final dos anos 50 do século XX, vieram com gado, alfaias agrícolas e pertences domésticos até ao centro de Angola. (Nota nº 2). Certamente que o colono instalado como comerciante de musseque, terá as suas singularidades, assim como aqueles que, em São Jorge do Catofe, perto da Quibala, inventaram quase tudo a partir das tradições da sua ilha açoriana.

 

Mas concentremo-nos no nosso Ernesto, o filho do colono, e comecemos, com base no texto do romance, a encontrar sinais que nos permitam penetrar na sua identidade, nascida do cruzamento entre culturas diferentes.

 

Dum lado, a cultura rural europeia do norte do país representada pelo pai que, aos 22 anos, Novembro de 1942, parte para o centro de Angola, “mais para fugir às agruras da vida do que em busca de aventura” (15), aí se fixa, durante quase vinte anos, como comerciante do mato, regressando definitivamente a Portugal com a conta recheada do proveito das transacções da loja, mais um primeiro prémio da taluda, comprada na Livraria Lello, onde entrara pela primeira e última vez. O pretexto foi o de permitir que o filho fizesse os estudos liceais e, depois, agronomia na Universidade de Lisboa.

 

Do outro lado, as origens do seu povo umbundu, caldeadas de algum sangue ganguela, da parte da mãe, proveniente do casamento dos bisavós, ela bailundo, ele Luimbe (73), habituados às agruras do Acto Colonial e do Estatuto dos Indígenas, em vigor até 1951, e ao forçado arrebanhamento sem regresso dos contratados, situação que ocorrera com dois tios, o doloroso penar do contratado e da família, que de forma tão bela, quanto brutal, descreveu, entre outros poetas africanos, António Jacinto na carta de um contratado, poema e depois canto na conhecida interpretação de Paulo de Carvalho.

 

É neste filho de colono que vamos tentar adivinhar as marcas mistas de uma identidade que se procura a si mesma, precisamente quando Ernesto volta, em Agosto de 1973, ao Planalto Central de Angola, sob o pretexto de realizar no Andulo, terra natal, o estágio final do curso de agronomia, integrando o Projecto-Piloto de Extensão Rural dirigido pelo engenheiro alemão Hermann Pössinger. (271-273).

 

Gostaria de ter tempo para falar pormenorizadamente, a começar pelos aspectos somáticos, pois, se acreditarmos em Eduardo Prado Coelho, “o suporte da identidade é o corpo que habitamos” (COELHO, 2003).

 

Seria desejável ter a perspicácia para apanhar o que há de negritude neste Ernesto, admitindo com Santos Neves, em As Colónias Portuguesas e o seu Futuro, de Paris, 1974, que “o homem negro é religioso, simbólico, rítmico, oral, cósmico, comunitário”. (NEVES,1974:64.74).

 

Iremos, por razões de tempo e da natureza desta apresentação, fixar-nos, apenas no círculo telúrico ou cósmico, no ciclo das origens que inclui a infância e a escola, para concluirmos com a esfera dos afectos, da intimidade ou das opções, deixando para um futuro texto escrito a dimensão religiosa ou simbólica, os aspectos comunitários e antropológicos, a pertença a uma língua, e não é despicienda a atenção que em todos os seus livros Rebelo de Andrade dá ao glossário de termos próprios, a sobrevivência da gastronomia africana tanto nele como nos africanistas, como o pai, os avós afectivos e outros comparsas, que se pelavam por uma moambada com quiabos e folha de batata–doce em plena Lisboa nos anos 60, enquanto o silêncio caía sobre as várias frentes de guerra colonial. (201-203).

 

 

CÍRCULO TELÚRICO OU CÓSMICO

 

É o apelo e a marca da natureza e dos vastos horizontes que marcaram tantos europeus que um dia se aventuraram nos céus de África e ficaram para sempre prisioneiros das cores do pôr-do-sol, das queimadas, dos cheiros do mato, da vastidão dos horizontes, dos ruídos da noite, dos sabores da sua gastronomia, dos monstros que povoam rios e florestas, dos espíritos que tudo espreitam.

 

Rebelo de Andrade, vai buscar ao mais fundo das suas vivências de natural de Angola, em pleno Huambo, para nos fazer apetecer daquelas terras.

 

As trovoadas, a chuva torrencial que desabava do céu (“Caramba! que nem atirada aos baldes!”), o cheiro da terra molhada nas narinas a despertar memórias” (295 e 296), eis alguns ingredientes.

 

Mas o livro está cheio destas referências, descritas pela paleta sensível de quem viveu muitos cacimbos e amou por demais aquelas picadas, rios e anharas.

 

Ouçamos apenas alguns excertos:

 

Às sete horas, já com o sol a jorrar prodigamente lá fora e a entrar pelos vidros da janelas” (25). “Este sol que cai do céu e vem iluminar a terra; que existe só aí e em mais nenhum lugar no mundo, refulgente, amarelão, gordão; que toda a gente saúda, em cada madrugada, porque dissolve as trevas da noite e recupera as formas das coisas; que faz crescer o milho e o feijão” (105).

 

A floresta aberta de mumués e mupandas, sobretudo as anharas onde o capim secara completamente, agradeciam a Deus os relâmpagos que ziguezagueavam no céu como surucucus imensas, os trovões ribombantes que ecoavam a seguir, a chuva que caía por fim. A paisagem ganhava cor: os mumués e as mupandas deitavam folhas novas pelos ramos e as anharas cobriam-se de verde. Pelo ar, o cheiro da terra molhada entrava pelas ventas das onças e dos songues, anunciando a predadores e a presas que o tempo das caçadas e das pastagens estava aí outra vez.” (35).

 

Para sabermos mais sobre esta dimensão somática de Ernesto, teríamos de pedir aos muitos poetas que ficaram deslumbrados diante da mulata, “saudades de duas raças/que se abraçaram no mundo”, no dizer de Vieira da Cruz, e que escrevessem duas linhas, pelo menos, sobre o mulato.

 

 

CÍRCULO DAS ORIGENS: INFÂNCIA E ESCOLA

 

Vamos espreitar com Rebelo de Andrade as brincadeiras de infância, com o amigo do peito, Chitembo, três anos mais velho, habituado a ficar na rua quando acompanhava a mãe Joana, criada bailunda, que o ajudou a criar depois do desaparecimento misterioso da mãe trocada por uma Maricota experiente nas artes da cama. “Tudo ensinou a Ernesto: a empurrar o arco metálico com a haste de arame grosso com a ponta em U, fingindo que ia de carro, guia para a direita, guia para a esquerda (Rom! rom! rom!); a fazer xifutas com ramos de mupanda e tiras de câmara-de-ar; a pôr visco nas árvores para apanhar pássaros; a assar nas brasas uma batata-doce ou uma maçaroca de milho, de que retirava os grãos com o dedo, um a um, até a mão ficar cheia, e pum!, catrapum!, meter tudo de uma vez na boca. Ensinou todas estas habilidades e outras mais, quase sem falar, mas com gestos” (70) Ernesto aprendeu até (o que nunca poderia revelar a ninguém!) a assar gafanhotos, depois de lhe retirar as asas, as patas e a cabeça. A saborear esse pitéu, de que tivera nojo a primeira vez, mas com que se regalava agora frequentemente” (71)

 

Vamos insistir nas origens africanas de Ernesto (ver nota nº 3), uma vez que ele, “cor de café com leite e cabelo frisado” (217), sempre viveu em casa de branco e beneficiando de tal condição, nunca se tendo deslocado, em mais de 12 anos, à terra Natal do pai, Vila Nova de Cerveira, para encontrar um parente, uma escola, uma igreja. O próprio pai Abel passou por lá apenas uma vez, como cão por vinha vindimada, aquando da viagem das segundas núpcias, apenas ficando registo das performances na cama dos hotéis, nem sequer a admiração de um monumento nacional, para quem era tão Salazarista quando foi o caso da Índia e depois o início da guerra colonial em Angola com o 4 de Fevereiro e o 11 de Março de 1961.

 

Já em 1961, acompanhemos Ernesto na visita ao quimbo, com a mãe Nhemba, na altura em que tudo está transtornado nas relações entre os pais.

 

Ernesto ia radiante, pensando “no prazer que seria conviver com Chitembo durante aqueles dias, de manhã à noite. Poder correr com o arco metálico, ou pegar na fisga para caçar pássaros, ou trepar às árvores para apanhar ninhos.” “Ver a avó, que contava histórias de guerras entre bailundos e ganguelas, de como as leoas caçavam gungas e songues, fazendo cerco, agachadas no capim, com os leões quietos, à espera da refeição.” (118 e 119)

 

Já quando fora do velório da bisavó, que não acompanhara, ficara em casa ouvindo, pela noite adiante, o batuque tocar lá longe: tum-tum! Tum-tum! Tum-tum! Tum-tum! E recordara que fora com ela que “comera pela primeira vez pirão com pexelim”. (74 e 75)

 

Anos mais tarde, haveria de sentir o apelo destas iniciações, truncadas de uma verdadeira imersão no mundo africano, que teria passado pela vida no quimbo com o ritmo das suas danças, dos contos e adivinhas tradicionais, os ritos de passagem, a festa dos rapazes.

 

Da alma africana apanhara pouco mais do que uns salpicos como ocorrera a respeito da história de Angola, com a professora Luísa Amaral (98), “porque era africana, angolana e biena; porque era mestiça, com sangue nas veias”, “referiu o rio Quanza (mas ainda o Cunene, o Cubango e o Quando), referiu a rainha Jinga (mas também o pai, Ngola Kiluanje), referiu até o motivo porque o Andulo se chamava assim. O soba Chocolongo tinha um filho (…) fora envenenado com fel de cabra …” (102) e a história continuava.

 

A verdade, porém, é que Ernesto em Angola não partilhou dos rituais dos brancos e apenas aflorou, embora ficando marcado, a pregnância omnímoda do mundo umbundo.

 

 

ESFERA DOS AFECTOS, DA INTIMIDADE OU DAS OPÇÕES

 

Para os outros “deixara Portugal para um estágio de fim de curso que prometia ser enriquecedor. Mas a verdade, a verdade, é que viera para ali sobretudo para se defrontar com as suas origens, o seu húmus placentário. Ou como costumava dizer irónica, mas sinceramente, preencher as lacunas com que se deparava ao tentar identificar o princípio da sua presença e do seu percurso no mundo.” (300 e 301)

 

“Tinha a certeza de que pertencia a Angola”. (302)

 

Mas para se defrontar com as suas origens, o seu húmus placentário tinha de voltar ao lugar da loja e estava abandonada, procurar Chitembo, mas este tinha recebido o dinheiro do contrato e fugido sem deixar rasto, procurar a mãe e ninguém sabia nem para onde nem por que razão desaparecera com a avó deixando-o ainda mais órfão da sua linhagem e no vazio da procura. (301)

 

Deixemo-lo a conversar com João Garcia, colega branco no Projecto-Piloto, cheio de dúvidas sobre a legitimidade de se promover o desenvolvimento rural em pleno país em guerra, podendo tal servir de “distracção” às populações para a luta pela independência.

 

Vamos antes, escutar outro nascido em Angola, também Ernesto, de apelido Lara Filho, com marcas de algum sangue negro nas veias, para lhe deixarmos as perguntas que ele pode fazer ao pai Abel.

 

Poema PERGUNTA de Ernesto Lara Filho (Benguela 1932-1977 Huambo/Nova Lisboa 1962). [in:FERREIRA; Manuel, No Reino de Caliban, II, vol.1976:219]

 

Tu

Que lá em Benguela

Tinhas saudades do Minho

expressas

em todos os teus olhares saudosos

em todas as conversas

 

Tu

que sempre recordavas lá tão longe

a tua terra distante

o teu Portugal de Menino

 

Porque

Meu Pai

Me negas o direito simples

de amar a minha terra

A minha Angola

porque me negas todos os dias

a todas as horas

o direito sagrado

de ter saudades da minha terra

de olhar com os olhos embaciados

mas contentes

de escrever longas cartas inconsequentes

de ter longas conversas melancólicas

sobre a minha terra desflorada

a minha Angola adiada?

 

Serei poeta também

adiado como a minha terra

eu negarei Pai e Mãe

pela minha terra

três vezes como Pedro

o apóstolo

negou Cristo

três vezes antes do galo cantar

no raiar da madrugada.

 

 

O PECADO MAIOR DE ABEL

 

Penso que o livro está aberto e que merece uma leitura atenta. Só falta voltar ao prometido pecado de Abel.

 

É verdade que os pecados já não são o que eram dantes, pois até o pecado original, que Santo Agostinho terá quase que inventado, já perdeu a sua razoabilidade junto de teólogos esclarecidos.

 

Por isso, o melhor será dar a palavra, por uma derradeira vez, a Inácio Rebelo de Andrade, ou seja a Ernesto: “O pai…, o pai…, o pecado maior que cometera, pior do que privar o filho da companhia e dos carinhos da mãe, (…) fora roubar-lhe as referências e deixá-lo naquela procura recorrente de identidade. Como que no meio e uma encruzilhada de caminhos sem tabuletas de destino…” (305 e 306).

 

Se quisesse deixar um recado ao Ernesto que se encontra no centro de Angola, no início de 1974, pouco antes do 25 de Abril, lembrar-lhe-ia uma afirmação de Alexandre Quintanilha: “A identidade não se descobre, constrói-se. Essa é a parte difícil.” (Notícias Magazine (D.N.) 200311.30)

 

Cá por mim, julgo que é tempo de concluir, afirmando que a referência ao inocente Abel bíblico poderia ter algum sentido, porque o nosso colono, inocente útil da política colonial portuguesa, entrou e saiu de cena, sem que ninguém lhe tivesse explicado, ou sequer pressentido, que a África tinha uma história e Angola tinha um futuro, algo que, há quarenta anos, em plena cidade de Luanda, Pössinger, com o meu envolvimento, tinha explicado a um grupo de cristãos e pessoas atentas à problemática social, em casa do engenheiro Melícias e da Madalena, no bairro de Alvalade, o que de modo nenhum, agradou a São José Lopes, director da PIDE, que o fez saber, com ameaças directas e queixas a quem de direito. Muitos colonos não souberam, ainda hoje, a história em que entraram como protagonistas.

 

Dito tudo isto, como apresentador do livro, certifico que merece leitura atenta este romance de base histórica, repleto de vivências e do testemunho apaixonado de quem trás no corpo e na alma as marcas de uma terra que amou e ajudou a construir, Inácio Rebelo de Andrade, escrivão maior das narrativas do Planalto Central de Angola.

 

Esaú Dinis

 

Texto concebido em Cabo Verde, nação crioula, e finalizado em Queluz, 2009-01-15

 

Notas:

 

Nota 1 - A União dos Escritores de Angola, no seu site (www.uea-angola.org/), cita Manuel Ferreira: “Tinha um ponto de vista limitado pelo pensamento colonial, deve ser hoje por nós compreendido, dado o tempo de inserção e o esforço sincero numa adesão, se discutível, honestamente romantizada.”

 

Nota 2 – Seria interessante, comparar com outros colonos, designadamente dos colonatos da Cela e do Catofe, que conheci de perto em 1960.

 

Nota nº 3 – Existe um certo mito sobre o número de brancos e mestiços em Angola. Segundo dados constantes do livro “Angola, os Brancos e a Independência”, de Fernando PIMENTA, Ed. Afrontamento, 2008, pag. 449: em Angola, em 1940 havia 44.083 brancos, 28.035 mestiços e 3.665.892, totalizando 3.738.010; em 1950, os brancos eram 78.826, os mestiços 29.648 e os negros 4.036.687, para um total de 4.145.266. no ano de 1960 havia já 172.259 brancos, 53.392 mestiços e 4.604.362 negros, somando 4.830.449; em 1970, a população total era de 5.673.046, os brancos eram 290.000, ou seja 5,1%, e os mestiços seriam acima de 1,1%, pois era esta a percentagem em 1960.

 

Bibliografia

 

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  • ANDRADE, Inácio Rebelo (2007) A MULATA DO ENGENHEIRO, Lisboa, Novo Imbondeiro Editores
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  • PIMENTA, Fernando (2008) ANGOLA, OS BRANCOS E A INDEPENDÊNCIA, Porto, Edições Afrontamento
  • ROSAS, Fernando e J.M. Brandão de Brito (1996) DICIONÁRIO DE HISTÓRIA DO ESTADO NOVO, I vol., Entradas: Acto Colonial, Casa dos Estudantes do Império, Ideologia Colonial e Estatuto dos Indígenas, Lisboa, Bertand Editora
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