Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


12-01-2020

A ARRÁBIDA - José Tolentino Mendonça,Cardeal e Arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano


A ARRÁBIDA

*José Tolentino Mendonça
Expresso, 11.01.2020

*cardeal, poeta e teólogo português. Actualmente é Arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, na Cúria Romana Inline image

Já Sebastião da Gama avisava: “O mais difícil não é ir à Arrábida. Difícil, difícil, é entendê-la: porque boas praias, boas sombras e boas vistas há-as em toda a parte... O que não há em toda a parte é a religiosidade que dá à serra da Arrábida elevação e sentido.” O que é a serra da Arrábida? É também isto: o pequeno monte Athos português. Isto é: uma geografia histórica de sedentos, de mendigos do absoluto, de ascetas e visionários, de ardentes peregrinos da verdade, de gente cultíssima e destemida, de mestres da vida do espírito. O prof. Silva Dias relata assim a forma de existência dos frades que habitaram, por séculos, a Arrábida e que ali deixaram uma irremovível espessura espiritual: “Os seus hábitos eram remendados e do tecido mais ordinário. Comida era a dos pobres, com jejum na maior parte do ano e abstinência permanente de carne, peixe, vinho e ovos, exceto para os doentes. Os pés sempre nus; disciplina assídua; total proibição de aceitar esmola pecuniária ou estipêndio de missas e sermões, assim como de fazer provisão de comestíveis, salvo de pão por alguns dias.” Mas a par disto, e como que a dar-lhe sentido, os frades seguiam o preceito de assistência à liturgia comunitária, mantinham a prática da leitura do ofício e duas a três horas diárias de oração mental. Foi, seguramente, influenciado por esta forma de vida que frei Agostinho da Cruz realizou um percurso espiritual e poético que hoje, a 400 anos da sua morte, continua a ressoar com vitalidade. A Arrábida tornou-se, à sua época, pela quantidade de conventos (no final do século XVI contava com nove conventos) e pela intensidade da vida espiritual que ela acolhia, “a expressão mais forte e radical do franciscanismo na sua luta pelo espírito das origens”. Era a fronteira de vanguarda de uma vontade reformista, antes de tudo em relação a uma vida religiosa enfraquecida, mas funcionava também como uma reserva em relação ao país, antes de tudo pela sua qualificada exigência ética, mas sem esquecer os elevados padrões de cultura. A Arrábida hospedou poetas com a qualidade de Agostinho da Cruz, mas também autores importantes como frei Rodrigo de Deus ou frei Afonso Medina com o seu “Tratado da Oração Mental”. A Arrábida possuiu uma riquíssima biblioteca transdisciplinar, que compreendia naturalmente livros de espiritualidade, mas também ensaios de filosofia, textos clássicos gregos e latinos, volumes de ciência, tratados de história e de botânica. Poupava-se no pão, mas não nas fontes do conhecimento e na abertura ao saber. Além disso, a Arrábida espelhava os grandes debates culturais e religiosos que se travavam dentro do catolicismo e das sociedades de então. Nomes importantíssimos da espiritualidade dessa época e com um fortíssimo impacto no sentimento religioso do tempo passaram por ali fisicamente ou através das suas ideias. Atesta-o amplamente o exemplo de frei Pedro de Alcântara, que viveu na Arrábida três anos como eremita, de 1542 a 1545.

Por isso, quem lê os versos de Agostinho da Cruz tem de interpretá-los bem. Quando ele diz: “Ouve-se a voz da rola em nossa terra,/ Soando com maior suavidade/ Cobriu-se d’alvas flores toda a Serra”, não podemos imaginar um ermo pueril. Na Arrábida estavam, na verdade, a acontecer coisas. Estava a ser testado um silêncio que alterava a palavra. Estava a ser verificada uma solidão que iluminava de forma nova a experiência humana. Estava a ser posta em prática uma fraternidade que inspirava novos modelos e valores para a vida em sociedade.

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