Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


05-05-2021

A invenção do amor por Helena Pato , autora e uma lutadora com mais de 80 anos!


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A invenção do amor

por Helena Pato , Inline image

Um homem e uma mulher encontraram-se no espaço exíguo de um corredor, junto da máquina onde habitualmente tomavam, juntos, o primeiro café da manhã. Eram dois funcionários dos recursos humanos, de uma empresa sediada numa rua central da cidade do Porto. Ela coleccionava antiguidades, ele não perdia um concerto na Casa da Música e pouco mais havia para mencionar, não fosse reconhecer-se alguma pertinência em aspectos, de certo modo secundários, tais como ambos se vestirem num estilo formal, idêntico aos administradores; e, como seria de esperar, nenhum deles ter lido Daniel Filipe ou conhecer o poema «A Invenção do amor». É destas duas pessoas que aqui se fala.

- Um café duplo, Ricardo? Estou espantada… Dormiste mal?

- Sim, Isabel, muito pouco. Ontem bebi demais e, compreenderás, custa-me partir de um lugar onde trabalhei durante um ano e, sobretudo, despedir-me de alguns colegas a quem fiquei ligado. Virei ao Porto de vez em quando, mas sei que dificilmente voltarei a fazer equipa com estas pessoas. Deixo amigos e …

- Por aqui, quando cheguei, de manhã, o estado de espírito era idêntico. Todos tristes com a tua partida. A propósito, a Rute e o Belino pediram-me que te dissesse adeus por eles. Subiram a correr para o último piso porque o chato do Gonçalves, logo que chegou ao gabinete, convocou-os para uma sessão urgente de trabalho. Falaram-me da ida a Lisboa, no mês de Agosto, e do passeio a Mértola…

Isabel fez uma pausa e retomou em tom irónico:

- O tal passeio contigo e com a tua mulher…

- Depois telefono-lhes. De qualquer maneira, já não tenho a intenção de hoje me despedir formalmente de ninguém. O jantar de ontem foi para isso mesmo. Despedidas arrumadas, portanto.

- E nós? – indagou Isabel, sem esconder inquietação.

- Nós o quê? Agora, eu tenho de ir fazer as malas e entregar as chaves de casa… Como amanhã o voo é da parte da tarde, se quiseres poderemos almoçar e, a seguir, eu largo para o aeroporto.

- Eu preferia encerrar o nosso caso esta noite com um jantar simpático ou um copo no Lys, onde namorámos tanto. E talvez …– Isabel deixou a frase em suspenso, olhando-o de frente e sorrindo.

- Ah! Agora chamas caso ao que houve entre nós? Vamos desencontrar-nos uma vez mais, Isabel. Esquece!

«Foi um caso ou andámos realmente juntos? Ela não entendeu sequer o que se passou»

« Este agora inventou um amor?»

- Ok, Ricardo, foi um flirt simpático.

- Logo à noite, assim que confirmar a hora da partida, ligo-te para o telemóvel. Talvez amanhã possamos almoçar ou tomar um café, por estas bandas. O jantar fica agendado para o meu regresso.

«Este tipo está mal-humorado!»

Ricardo despediu-se com um seco “Até logo” e saiu da empresa. Na rua, mudou de planos. Estava decidido a alterar o voo, para partir do Porto de manhã – e não à tarde, como tinha previsto. Não iria almoçar com ela no dia seguinte.

«Estou farto de encontros, sempre com mais desencontros»

As palavras daquela manhã, em clima de alguma crispação, tinham-lhe deixado um sabor amargo.

«Para quê retomar um diálogo que há muito era de estranhos? Esta relação estava condenada… E eu que cheguei a acreditar… Que mulher fria! Há relações que nem resistem ao aprofundamento nem suportam fins naturais. Pedem violência para ficarem bem terminadas. Nunca entenderei as mulheres!»

À noite, a horas em que dava como certo que todos já teriam saído, Ricardo voltou à empresa, para deixar uma "pen" com fotografias dos seus últimos trabalhos, e dirigiu-se à sala onde Isabel habitualmente trabalhava. Ninguém: assim o desejara. Em silêncio, despedia-se de um espaço que lhe atravessava memórias de dias felizes e onde a equipa que o acolhera lhe tinha permitido aprendizagens únicas. Sentou-se na cadeira dela, puxou do “smatphone” para confirmar a resposta da companhia aérea sobre o pedido de alteração do voo. Varreu a sala com um último olhar, enquanto se lhe dirigia, mentalmente: «Vou madrugar! Partida do Porto às 7 horas... Assunto arrumado, minha querida!». Escreveu um bilhete que colocou na gaveta da amiga, rabiscou um post-it e colou-o no ecrã do computador.

Na manhã do dia seguinte, Isabel foi surpreendida pela letra dele e ficou parada, com o olhar fixo nas três palavras “Bilhete na gaveta”, sem vontade de saber o que anunciariam. A vida era para ser encarada de frente – pensou, ao mesmo tempo que, num gesto brusco, decidiu abrir o pedaço de papel, dobrado em dois.

«Afinal parto de manhã, não almoçamos. Venho ao Porto daqui a um mês e nessa altura convido-te para jantarmos ou bebermos um copo no bar do Lys. Até lá vamos falando».

- Vê se aprendes, Isabel! Nem se deu ao trabalho de telefonar! Um post-it e um bilhete de duas linhas, para encerrar dez meses de amor, ou lá o que foi… Grande safado! Homens! (falava em voz alta, irada, enquanto atirava para o lixo a mensagem que ele lhe deixara na gaveta). Jantar daqui a um mês? "Até lá vamos falando"? Está bem, está… O tipo é parvo! Quero que se foda! ... Que ano desgastante este! Tomara vê-lo definitivamente pelas costas…E que seja feliz com a mulherzinha! – resmungava, a encaminhar-se para uma reunião.

Junto dos colegas, procurava agora disfarçar o estado de espírito em que ficara, sem conseguir encadear um pensamento lógico. Cruzava a ideia de que se avizinhavam tempos difíceis, pela ausência dele, com um sentimento de ódio que desejava conseguir alimentar. A reunião foi breve e, no fim, Isabel esgueirou-se, fugindo do contacto com colegas. Não conseguia esquecer o bilhete.

«Oxalá esta raiva não me passe! Que fulano mais complicado! Não entendeu nada. Não tivemos um caso? O que foi então isto, com uma esposa que ele não largou, nem iria largar nunca?»

Sabia que não podia deixar-se abater. Naquela noite iria tomar um ansiolítico, coisa leve, apenas para prevenir uma eventual insónia. No dia seguinte, queria estar intelectualmente fresca e com uma aparência sedutora, quando fosse ouvida na entrevista que a conduziria ao cargo de diretora de Marketing, Comunicação e Criatividade da empresa. Definitivamente, essa era a sua maior ambição.

«Nos tempos próximos, amores nem pensar! Um caso ou outro, logo se verá… Mas fica-se sempre a pensar se o que eles querem é protecção maternal ou favores das chefias».

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A invenção do amor? Já não há amores inventados, como os do poema de Daniel Filipe.

«Procurem a mulher o homem que num bar

de hotel se encontraram numa tarde de chuva

Se tanto for preciso estabeleçam barricadas

senhas salvo-condutos horas de recolher

censura prévia à Imprensa tribunais de excepção

Para bem da cidade do país da cultura

é preciso encontrar o casal fugitivo

que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia

de que os viram passar de mãos dadas sorrindo

numa rua serena debruada de acácias

Um velho sem família a testemunha diz

ter sentido de súbito uma estranha paz interior

uma voz desprendendo um cheiro a primavera

o doce bafo quente da adolescência longínqua…»

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Helena Pato, «Histórias ao Pôr-do-Sol» (em esboço), 2021.