Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


22-05-2021

A cidade do Rio de Janeiro – a iníqua estrutura societária em processo


Escrito por Jorge Natal e Helcio de Medeiros Junior (1)

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Construção da avenida Presidente Vargas com a Central do Brasil ao fundo.

A iníqua estrutura societária em processo

No século XVI, de início em um istmo de terra situado no atual bairro da Urca, passo seguinte no Morro do Castelo e depois em seu entorno mais imediato, a população carioca se resumia basicamente aos portugueses e aos povos indígenas. Outro aspecto a destacar, tendo em vista essa configuração e o pequeno contingente populacional existente, é que a divisão social do trabalho se limitava às funções de navegação e militar, bem como a algumas poucas atividades produtivas. Mais detidamente: daí sobressaíam os comandantes dos navios e os representantes da Coroa portuguesa em terra de um lado e, de outro, os que operavam os navios, os que desenvolviam ofícios e os que plantavam. Sendo assim, trivial dizer que os primeiros estavam situados no topo da pirâmide social e os últimos na sua base. Por conseguinte, também se pode dizer que a estratificação em tela era bastante simples; mas não apenas, posto que ela era marcada adicionalmente por evidente ‘assimetria’ entre os ‘de cima’ e os ‘de baixo’.

No século XVII, a população carioca não se expandiu significativamente e tampouco seu espaço vivencial – apesar da importância ‘a maior’ da sua zona portuária e comercial. Não obstante, é necessário registrar que nesse mesmo século chegou ao espaço em questão um dado contingente de negros africanos (submetidos ao regime escravagista). Dentre outras coisas, é trivial, esse fato revelava a necessidade de mais braços para ‘suportar’ as atividades econômicas, bem como o relativo avanço da divisão social do trabalho então em curso.

No entanto, vale observar que essas pessoas foram ocupadas em sua larga maioria em atividades serviçais domésticas e na plantação e colheita agrícolas (cana de açúcar e víveres de primeira necessidade); de outra forma: a ampliação dos espaços vivenciais e produtivos em tela ocorreram sobretudo nas cercanias da nascente cidade – é dizer: essa ‘importação de gente’ não foi direcionada precipuamente para o nascente meio urbano.

Isto posto, anote-se que a estrutura societária que daí deriva era a que segue: no topo da pirâmide social pontificavam os portugueses representantes da Coroa e uma infante classe de produtores rurais e, na sua base, as anotadas pessoas oriundas da África e seus descendentes; por fim, numa situação social intermediária, lá estavam os portugueses e os brasileiros ocupados em seus ofícios. Portanto, embora mais avançada que a do século anterior, a estratificação conformada no século em análise nem de longe era das mais complexas – porém, assim como antes, ela continuava mostrando-se igualmente ‘assimétrica’.

No século XVIII, verifica-se nova expansão da população, como dos espaços nos quais a vida acontecia e a produção era realizada. Dessa vez, todavia, com claro destaque do núcleo urbano propriamente dito da jovem cidade. Isto posto, assinale-se que as novas invasões francesas, a transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro (1773), o auge da atividade da mineração em Minas Gerais, o desenvolvimento da agricultura (especialmente, a açucareira), o aumento pronunciado da população negra africana submetida à barbárie do escravismo etc. contribuíram decisivamente para o estabelecimento de uma divisão social do trabalho mais complexa que as precedentes.

No topo da pirâmide social lá permaneciam os portugueses representantes da Coroa, os que enriqueciam com o comércio (dentre esses, o de pessoas arrancadas da África para fins da escravização) e a nascente burguesia agrária ocupada com o açúcar e em seguida com o café; abaixo, estavam os trabalhadores de toda ordem; e, por fim, a população submetida ao aludido regime da escravidão. Tudo isso, face o exposto, reiterando a referida ‘assimetria’ social característica dos séculos anteriores.

No século XIX, as mudanças relativas à divisão do trabalho foram ainda mais – aliás, bem mais – expressivas que no século precedente. Em esforço de síntese, registre-se que não apenas foi tornado mais complexo o tecido social urbano e sua economia, assim como, “pari passu”, a própria estratificação em discussão. Como segue: ela ‘partia’ dos proprietários de terras e produtores rurais, passava pelos estratos médios (vide os profissionais que a diversificação econômica e societária passou a exigir, como é o caso de advogados, médicos etc.), os novos artífices e trabalhadores urbanos com dados graus de especialização (alguns já submetidos ao assalariamento) e, por fim, alcançava os trabalhadores menos qualificados profissionalmente. Além do que veio de ser anotado, considere-se que nesse século figuraram por longo tempo os escravos (até 1888) e a realeza (até 1889). Em suma: a divisão do trabalho e a estratificação sociais tornaram-se ainda mais complexas face às vigentes nos 300 anos anteriores – e vale o acréscimo, quer horizontal quer verticalmente.

Mas é na passagem do século XIX para o XX que efetivamente surge o Rio que veio a se conformar nos anos 1900. É dizer: do ponto de vista temporal essa nova realidade deslancha efetivamente com a chamada República Velha. É assim que ao lado da modernização do seu centro histórico e das campanhas de vacinação, todas orientadas pelo ideal da reforma urbana e do higienismo em voga, contrapontos ao precedente passado colonial, verifica-se notável crescimento populacional e expansão da sua mancha urbana; e, nesse sentido, por suposto, extraordinário avanço da tantas vezes referida divisão do trabalho.

O requerimento crescente por mão de obra qualificada graças à expressiva urbanização do antigo centro histórico é apenas uma das suas expressões. Outra é a demanda por profissionais de saúde devido às políticas sanitárias levadas a cabo por Oswaldo Cruz. As fortunas acumuladas no comércio e nas atividades agrícolas, assim como as relações de compadrio que atravessavam o ‘jovem’ Estado brasileiro são evidências adicionais da complexidade adquirida pela vida social carioca. Também vale adicionar na composição desse quadro a estruturação da vida partidária na medida em que ela tinha no seu espaço lugar privilegiado – afinal, como se sabe, o Rio era a sede do governo federal desde o quarto final do século XVIII.

Ademais, é necessário não perder de vista que todas essas transformações revelavam uma estratificação crescentemente verticalizada: a derrubada do morro do Castelo (1922), lugar à época de população destituída de poder aquisitivo e de poder propriamente dito, é bem ilustrativa. A ocupação desordenada e precária de outros morros vizinhos, de áreas da atual Praça Onze até a atualmente denominada de Cidade Nova e mesmo o deslocamento dessa população para as periferias/bairros distantes do tradicional centro histórico são provas cabais da configuração de um poder verdadeiramente refratário às chamadas, conservadoramente, classes perigosas! (adendo: essa política de expansão seguiu firme no tempo, como exemplificado pela abertura da atual Avenida Presidente Vargas nos anos 1940 e pelas políticas de remoção dos anos 1960 com o governador da antiga Guanabara, o sr. Carlos Lacerda).

Depois de 1930 até à entrada dos anos 1960 e daí aos anos 1970, houve extraordinário aumento da sua população e ampliação significativa da divisão social do trabalho, mas também crescimento da economia carioca – no bojo da expansão da economia brasileira. Daí derivou o seguinte: no primeiro período, dado o reforço da rede de proteção social institucionalizada naqueles decênios, especialmente nos governos Getúlio Vargas, houve importante acomodação classial; e, no segundo, apesar da favelização, da violência urbana, da concentração da renda e da riqueza etc., graças ao aludido crescimento da economia e da destacada criação de postos de trabalho, os problemas que se iam acumulando foram mais uma vez mitigados. Nesses termos, vale insistir que apesar da notável modernização capitalista desses aproximados 50 anos,  nos quais o país agrário ‘virou’ urbano e o agrícola ‘virou’ industrial, a estratificação social verticalizou-se enormemente; de outro modo: tal modernização se fez acompanhar da ‘produção’ de uma sociedade crescente e profundamente iníqua – incluindo o Rio, por suposto!

Nos anos 1980-90, a supramencionada iniquidade assumiu proeminência avassaladora. A crise econômica estrutural do país junto com a anterior perda da condição de capital federal e os problemas imediatos advindos da fusão do antigo estado da Guanabara com o também antigo estado do Rio de Janeiro afetaram gravemente o desenvolvimento carioca e, em especial, em vista da presente reflexão, sua dimensão social. Numa expressão já conhecida entre aqueles que estudam o Rio de Janeiro, tanto o município quanto o estado como um todo, ‘vivemos’ ali o que S. Dain, em trabalho de 1991, publicado pelo IUPERJ/RJ, denominou de O Rio de Todas as Crises (e.g., crise econômica, social, política, institucional etc.). Dentre outros aspectos, sublinho a marcada precarização das condições de vida das maiorias populacionais, o aumento expressivo da concentração da renda e da riqueza, a explosão da favelização e a radicalização da violência urbana(2). Em suma: o que já estava ruim piorou muito, como facilmente se pode apreender na consideração da referida assimetria social!

Na entrada dos anos 2000 houve alguma inflexão econômico-societária, por conta dos pesados investimentos que aconteceram no espaço carioca devido às alianças políticas estabelecidas entre o ente municipal e os governos estadual e federal. Entretanto esse processo foi rapidamente revertido a partir aproximadamente de 2014. Crise econômica, desemprego, informalidade, contração salarial, abandono das tradicionais políticas públicas de saúde e educação etc. passaram a ser ‘coisas do dia a dia’ de uma cidade abandonada pela incúria governamental e mesmo por parte da sua cidadania. Resultado: mais verticalização da supramencionada assimetria social. Não fora suficiente foi adotada de forma radicalizada a chamada agenda neoliberal por parte do governo central (de anticrescimento econômico e de retirada de direitos sociais e trabalhistas) – que sabida e perversamente alcançou todos os rincões do país, inclusive, claro, o Rio de Janeiro.

Relativamente aos últimos anos em análise, tendo em vista o fato de “não haver processo social sem sujeito social”, como não se cansava de repetir a brilhante socióloga Ana Clara Torres Ribeiro (do IPPUR/UFRJ), chamamos especial atenção, ainda, para o papel dos capitais fundiários, imobiliários e financeiros, bem como para as suas interações, dado o lugar decisivo que eles ocupam na conformação dos rumos da cidade. A explicação desse destaque é simples: eles estão situados no topo da estrutura social em todos esses anos – em verdade, grosso modo, desde a entrada dos anos 2000.

Da análise anterior resulta que há no Rio flagrante e perversa estratificação e que ela foi socialmente construída desde os seus albores. Muitas são as suas expressões e diversos indicadores poderiam ser aqui brandidos. Mas o que parece mesmo central é que essa cidade carrega de um lado as marcas de uma população negra escravizada por cerca de 300 anos (que gerou graves rebatimentos societários no tempo), de uma massa de trabalhadores assalariados historicamente tanto mal remunerada quanto colocada à margem das devidas e necessárias redes de proteção social, de uma ‘classe’ média constituída – em regra – com fortes ranços conservadores (como também acontece em outros lugares do país), de moradias também historicamente precárias e com serviços públicos igualmente precários, da cotidiana violência urbana, dos sempre inadequados e insuficientes transportes coletivos etc.; e, de outro, também as marcas derivadas do fato de parcela importante da sua elite econômica e política ser longeva e profundamente avessa às maiorias populacionais.

Concluindo, defendemos que para que o Rio volte a ser lugar emblemático da nacionalidade brasileira, mas não apenas ideológica e idealizadamente como o foi em certa medida no passado, urge enfrentar a brutal assimetria social refletida em seus variados espaços tão segregados. Temos em conta neste ponto não apenas questões humanitárias, mas também o aspecto dinamização econômica (ampliação do mercado interno) e o dos padrões que a cidadania deveria exigir para efeito do que genericamente denominamos de bem-viver individual e coletivo.

Dados esses desafios, reiterando, também defendemos que urge explicar a teia de relações expressas na divisão do trabalho/estratificação social carioca contemporânea de sorte a desvelar: o porquê de a renda e a riqueza serem tão concentradas; o porquê, imbricadamente, de os recursos públicos alcançarem apenas marginalmente os que mais deles precisam; e, da mesma maneira, o porquê de eles também alcançarem apenas marginalmente os espaços da cidade ocupados pela população de menor poder aquisitivo e político, educacional etc.

***(1) Este artigo constitui versão redacionalmente modificada de parte do capítulo 9 (escrito a quatro mãos pelos autores que assinam a presente reflexão) e que consta do livro “O desenvolvimento brasileiro recente – da crítica da economia política ao planejamento urbano e regional crítico” (Editora Letra Capital, 2020).

(2) Tudo isso, para complicar ainda mais, aconteceu quando da ascensão ao poder de governadores eleitos em momento marcado pelo esgotamento do anterior padrão nacional de desenvolvimento econômico (incluindo o do financiamento dos gastos públicos), bem como pelas mudanças estruturais verificadas no capitalismo central, como exemplificado pela emergência do neoliberalismo, da chamada financeirização da riqueza e da terceira revolução científica e tecnológica.

 

[Fonte: http://www.terapiapolitica.com.br]