Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


10-06-2021

A futebolização do regime em curso é uma coisa muito perigosa?? Rui Tavares


in Público

9 de Junho de 2021

Rui Tavares*

??A futebolização do regime em curso é uma coisa muito perigosa??

? Nós precisamos de tudo menos de uma polarização futebolística em torno do 25 de Abril. Mas é isso que parece que a liderança da direita portuguesa nos quer dar, completa com claques, vaias e clubite aguda. ?

Há anos que venho defendendo que as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril são um ponto de reflexão crucial para o futuro do nosso país e da sua democracia. E tenho argumentado, muito antes de haver qualquer decisão governativa a esse respeito (aliás, muito antes de haver este governo, pois fi-lo com governos de esquerda e de direita na última década) que essas comemorações deveriam começar quando tivéssemos mais um dia de democracia do que tivemos de ditadura, a 24 de março de 2022.

Isto defendi, portanto, muito antes de ser nomeado comissário nacional dessas comemorações o ex-Presidente Ramalho Eanes e comissário executivo o sociólogo Pedro Adão e Silva, cuja escolha saudei nestas páginas salientando que, “mais do que comemoração, precisamos de uma missão”: “Uma missão por uma nova relação entre Estado e cidadão, entre o país e o seu território, entre as gerações e o seu futuro, num período que será marcado por enormes transformações tecnológicas, ambientais e sociais mas no qual queremos que a democracia fundada no 25 de Abril não só sobreviva mas floresça.”

Estou portanto muito à vontade para comentar a polémica de ontem sobre as criação de uma estrutura de missão para os 50 anos do 25 de Abril e as condições em que ela, e quem a dirigir, vai trabalhar. Estou à vontade porque tudo isto eu já o dizia antes de saber que pessoas estariam em causa, e não preciso de mudar uma linha ao que diria se outras pessoas ou mesmo outro governo estivessem em causa. Se o 25 de Abril deve ser comemorado — e eu não consigo imaginar nenhuma democracia digna desse nome que não celebrasse o meio século da sua revolução democrática —, e se essas comemorações forem entendidas como uma missão, é evidente que uma estrutura de missão é um organismo adequado a dirigir essas comemorações. E é evidente também que qualquer comentador ou político minimamente responsável se deve resguardar de inflamar o populismo fácil a propósito disto tudo.

Ao contrário do que vi por aí dito e escrito, as comemorações do meio século da nossa democracia não são coisa para apenas um dia. Por uma coincidência feliz, no tal dia em que teremos mais tempo de liberdade do que de repressão, 24 de março de 2022, cumprir-se-ão também sessenta anos sobre o Dia do Estudante de 1962 e o início da Crise Académica que representou um momento de viragem na oposição democrática ao salazarismo. E as comemorações devem estender-se até aos cinquenta anos das primeiras eleições e da entrada em vigor da Constituição que consolidou o nosso regime. Para isto será necessária uma estrutura eficaz e profissionalizada? Naturalmente que sim. Quatro anos de duração é muito? A Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses durou dezasseis. Dirigir esses trabalhos implica gente remunerada a tempo inteiro? Ninguém colocou em causa que assim tivesse de ser na Expo ’98, na Porto Capital Europeia da Cultura ou em eventos que não têm menos (nem mais) dignidade do que a celebração da nossa democracia. Deve haver contenção e debate público sobre os gastos e os planos de comemorações? Claro que sim. Mas, para pôr as coisas à sua escala, estamos a falar do mesmo país em que nesta mesma semana foi anunciada a candidatura à co-organização do Mundial de Futebol 2030 sem que tivesse havido qualquer debate público adequado ou se tivesse levantado um sobrolho, ou seja, como se pudéssemos sequer imaginar que o Mundial 2030, como antes o Euro 2004, não nos fosse custar dinheiro nenhum. O futebol, já se sabe, usufrui no nosso país de um regime de isenção de escrutínio superior ao do próprio regime democrático.

E é, aliás, esse ponto — o da futebolização do regime em curso — que me parece ser aqui o mais grave. É que deve ficar registado que foi o próprio mundo do futebol a lançar o ataque às comemorações do 25 de Abril: quem quiser fazer a história da polémica verá que ela apareceu primeiro num canal de um clube de futebol, não lhe sendo alheias rivalidades pessoais e clubísticas como motivação, para no dia seguinte o ataque ser amplificado e reproduzido pelos líderes do PSD, CDS e da extrema-direita sem lhe tirar sequer uma palavra. No caso de Rui Rio, com a relevância acrescida de termos o líder do maior partido da oposição a fazer das comemorações do 25 de Abril objeto de polarização partidária de uma forma — deslegitimando a escolha do comissário executivo — que não lhe deixa outra escolha senão recuar ou auto-exluir-se delas, o que seria de uma enorme gravidade.

Nós precisamos de tudo menos de uma polarização futebolística em torno do 25 de Abril. Mas é isso que parece que a liderança da direita portuguesa nos quer dar, completa com claques, vaias e clubite aguda. Mau prenúncio para o debate sobre o futuro do país que é necessário fazer e que não terá nos próximos anos melhor oportunidade.

 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

*Historiador; fundador do Livre

texto do artigo de opinião transcrito na íntegra da publicação efectuada na ligação:

(https://www.publico.pt/.../futebolizacao-regime-curso...)