Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


11-05-2007

Momentos de medo na Ilha


Maria  Eduarda Fagundes

          O ar estava parado, tão quieto como se a vida fizesse uma pausa na lida. Nenhuma brisa movia as folhas das árvores ou movia as cortinas rendadas das janelas em guilhotina. Havia uma estranha sensação na calmaria que deixava bichos e os mais velhos apreensivos. A experiência lhes dizia que naquelas ilhas vulcânicas, postadas sobre uma placa tectônica, isso era sinal de perigo. Não demorou muito e uma sutil vibração se fez sentir. Os vidros das janelas e das cristaleiras começaram a tilintar numa freqüência crescente, ininterruptamente. Pantufas, que ronronava numa cestinha almofadada na cozinha, abalou para fora da casa, com destino ignorado. Minha mãe apareceu ansiosa, precipitou-se para o quarto onde minha irmã e eu brincávamos “de boneca” com uma linda mobília pintada de verde claro, decorada com ramos de florzinhas coloridas, que meu tio José, marceneiro de primeira linha, havia nos ofertado. Meio tontas, sem entender direito o que acontecia, fomos levadas pelas mãos até o quintal, onde desamparadas, ficamos agarradas às roupas de mamãe, esperando o tremor de terra cessar. Foram momentos terríveis, de um total sentido de impotência, entregues à força da natureza. Só minutos mais tarde, quando tudo voltou ao normal, meu gato cinzento de manchas brancas nas patas e no pescoço, que lhe davam a aparência de estar calçado e de babete, reapareceu e juntos, nós e ele, voltamos ressabiados ao interior da casa. Na rua as vizinhas, agitadas, comentavam o abalo de terra e certificavam-se se não havia alguém ferido. Tempos depois papai chegava alvoroçado do trabalho. Estava preocupado com as mulheres de sua vida. Tudo ficou bem, tinha sido só mais um susto para as gentes do Faial.

No final dos anos 40 aconteceria mais um desastre natural do qual minha lembrança de criança jamais se esqueceria. Naquele dia, à tarde, o tempo mudou com os ventos e correntes marítimas vindos das Antilhas. No céu nuvens carregadas, negras, pesadas foram surgindo no horizonte. O mar ficou encapelado, ameaçadoramente revolto e cinzento. As pessoas já esperavam; era uma tempestade que se aproximava, daquelas que só os ilhéus ou os moradores das selvas tropicas conheciam.

À beira-mar, as vagas se atiravam contra as pedras da muralha num barulho surdo e profundo. Retraíam-se em seguida deixando um rastro de espuma branca até que outras ondas vinham e se precipitavam sobre as anteriores, num movimento sem fim e cada vez mais forte e agressivo. Abalada a muralha tremia.

Naquela época morávamos no rés-de-chão de uma casa branca de dois andares, de janelas verdes, na Rua Barão de Roches, junto à ladeira que levava à parte alta da cidade.
 A noite caíra e após o jantar puseram-nos para dormir, não sem antes rezarmos para o anjo da guarda pedindo proteção e agradecendo por mais um dia.
Fora da casa, embaladas pelo vento, grossas gotas de chuva, vistas pela luz da rua, começavam a bater na janela, e depois de um instante, escorriam pela vidraça e desapareciam. Esse choro hipnótico da natureza nos fez adormecer.  

Trovões rebimbavam, relâmpagos chicoteavam o breu dos céus, ouvia-se o vento uivar violento e um grande burburinho de gente que se movia na rua, tentando escapar à tormenta, quando papai nos acordou. A casa estava sem energia elétrica e inundada, com água pelas canelas. Minha mãe com uma lamparina nas mãos iluminava a escuridão do aposento. Assustadas fomos rapidamente envoltas em cobertores, retiradas de casa e levadas com muita dificuldade, pela ladeira acima para a parte alta da ilha, onde minha avó materna tinha morada. Todos fugiam, procuravam segurança e abrigo nas casas de parentes e amigos, longe das águas. A noite toda foi açoitada pela tempestade.

O dia seguinte despertou calmo, com céu azul límpido e um sol radiante. Mas os prejuízos contabilizados eram enormes. Pessoas feridas, a muralha destruída pelas marradas das vagas, árvores caídas, casas destelhadas, muros arrebentados, ruas e casas cheias de pedras basálticas, areia e lama. Destroços eram vistos por todos os lados. Ao Poço dos Frades, no porto da Horta, um navio foi levado pelo mar e lá ficou encalhado. No campo plantações por terra, arrasadas.

Precisou-se de muitos dias e muito trabalho para limpar tudo. Consertar os estragos e reconstruir o que foi destruído provavelmente levou anos, apesar da ajuda que veio imediata das outras ilhas, do continente e dos USA (dos imigrantes que lá vivem).

 Pela sua localização no Atlântico, o arquipélago dos Açores é com certa freqüência vítima de abalos sísmicos, vulcões e de ciclones. E se hoje, apesar da tecnologia, ainda tem-se dificuldade em prevenir os efeitos dos desastres naturais, imagine-se nos séculos passados, quando a população atingida pelo infortúnio ficava, isolada, sem meios de pedir ajuda.

Maria Eduarda Fagundes