Iclas - Instituto de Culturas Lusófonas
Antonio Borges Sampaio


08-11-2021

O Konkani enjaulado - Pedro Mascarenhas


«O konkani é língua dos criados» - Esta frase, que prevaleceu em Goa e repetida, vezes sem conta, antes da guerra de libertação, diz tudo. Por onde tenho andado, em terras de Salcete, em Panaji e arredores, as pessoas idosas com quem tenho trocado impressões ainda se recordam perfeitamente desta frase saída da boca de alguns goeses da dita classe alta e dos descendentes (ou mestiços). Essa elite lidando permanentemente com as autoridades coloniais portuguesas mais não faziam do que aceitar inconsciente e passivamente a imposição de uma língua estranha à grande maioria dos habitantes de Goa que, ainda hoje, ignora, que no século XVII ( decreto de 7 de junho de 1684 do vice-rei Conde de Alvor)  foi declarada guerra à língua vernácula, tendo por objetivo impor e proteger a unidade nacional de Minho à Timor. O konkani, língua de Goa, foi associado ao retrocesso cultural e o português era a língua franca da vida pública e governamental.

Contudo, estes auto-marginalizados, que representavam uma gota no oceano, não podiam influenciar a esmagadora maioria dos goeses cristãos, já para não falar da maior maioria, os goeses hindus, tantas vezes esquecidos, quando discutimos e falamos acerca de Goa, como se eles não existissem. O célebre cantor, falecido há muito tempo, Alfred Rose, numa das suas canções, recordava-nos que os verdadeiros defensores do konkani foram as pessoas simples do campo que, vivendo longe das cidades, sem contacto com os europeus, permaneceram impermeáveis às influências exteriores. Não nos podemos, contudo, esquecer da outra elite, a dos resistentes políticos que, estoicamente, de Bombaim (atualmente Mumbay), de Poona e mesmo do “interior” de Goa utilizavam o concani (e o inglês, também) como arma política para marcar a diferença, fazendo vincar a autoestima e orgulho da sua cultura.

Como em 1987 o estado de Goa foi proclamado 25º estado indiano, a sobrevivência do konkani está agora assegurado desde 1992 pelo Anexo 8º da 71ª Emenda da Constituição da Índia, a par das restantes línguas nacionais, apesar da sua fraca expressão (cerca de 0.21%) no imenso contexto indiano. Presentemente é mais falado do que escrito, lido e até estudado nas escolas. Os jornais mais lidos são da língua inglesa, o Herald e o Navhind Times, bem como, a excelente revista Goa Today, além do Bhangarbhui em konkani, mas em escrita devanagari.

 Nas conversas quotidianas podemos observar fenómenos curiosos e cómicos. Cada frase é um híbrido de inglês e konkani:«- Haum boro assa, and what about you ? ». (Eu estou bem e você?) . Ou então esta: “You should speak konknni because ti amchi maim-bass, rê.». (Deves falar konkani porque é a nossa língua materna, pá).    

A questão da sua perenidade põe-se do lado da diáspora. De acordo com o Atlas das Línguas do Mundo em Perigo de Desaparecimento da UNESCO as línguas podem ser classificadas consoante o seu uso e prática: 1- Ameaçada: Uma língua é considerada ameaçada quando já não é falada pelas crianças. 2- Moribunda: quando apenas resta um punhado de falantes idosos. 3- Extinta: quando já não restam falantes. O que afirmo por escrito é irrevogável: o konkani, fora de Goa, está moribundo e caminha a passos largos para a extinção. Não vale a pena alguém socorrer-se de justificações irreais ou buscar desculpas ou soluções quiméricas, e até mesmo lançar propostas aliciantes do género “estude konkani e ganhe uma viagem à Índia”. É tarde demais para discursos espampanantes em defesa do konkani, por exemplo, em Portugal porque já não levam a nada, está-se num beco sem saída. A tradição oral espontânea sobrepõe-se à imposição de qualquer decreto-lei ou da obrigatoriedade escolar. Sejamos realistas! Quantos afro-brasileiros e afroamericanos, descendentes de escravos, sabem falar a língua dos seus longínquos antepassados africanos? Muitos nem sequer sonham que vieram de África! Entre nós já há quem diga que os goeses não são de etnia indiana! Que disparate! Goeses são extraterrestres?

De facto, a experiência prática ensinou-nos que a tradição oral que flui de geração em geração, a passagem de testemunho de pais para filhos é o meio mais seguro para manter bem vivo e de boa saúde todos “os fatores da civilização”, sejam eles de que ordens forem. Os pais (1ª geração) que se fixaram em Moçambique vindo de Goa e que sabiam falar konkani não ensinaram a sua língua aos seus filhos (2ª geração) nascidos em África. Estes fixados em Portugal, logicamente devido ao “vazio linguístico”, nada podem transmitir aos seus filhos (3ª geração), e, até porque, não só desconhecem o conceito de cultura goesa, como também, uma larga maioria tem um nível de cultura geral abaixo da média. O konkani em Portugal foi submerso pela língua dominante, predadora, o português. O contacto permanente com esta língua não deixou outra opção. Não se pode remar contra tanta maré, digamos, portuguesa; as televisões, as rádios, os jornais, as revistas, a escola, os amigos e vizinhos. A primeira geração falhou totalmente e, assim, criou-se um fosso intransponível entre avós e netos.

Terá a diáspora goesa consciência do que é a cultura de Goa ou da similitude cultural da Costa de Konkan? Saberão os goeses (ou pseudogoeses?) que cultura significa a totalidade das manifestações espirituais que constituem a herança social de um povo ou de uma raça, e determinam a sua persistência histórica ? Canto, música, dança tradicional, usos, costumes, tradições, gestos característicos, teatro popular, trajes e alimentação, e sobretudo a língua, diz-lhes alguma coisa? Mandó, dulpod, dekni, que é isso? Alfred Rose, Bab Peter, Robin Vaz, Ophelia, Antonette, quem são eles e elas? E estes, Francisco Luís Gomes e Manohar Sardesai, Vimala Devi? Dir-me-ão muitos que “somos goeses porque gostamos” do chacuti e de outros pratos típicos, porque marcam presença nas festas de Nª. Sª. do Perpétuo Socorro e de S. Francisco Xavier ou porque vão à Goa só para “comer mangas” (sic) além das idas aos Calangutes e Colvas.

Quaisquer medidas que tomem as instituições ou coletividades goesas sediadas em Portugal no sentido de “ agitar, ativar, atrair ou animar”, elas estarão sempre votadas ao fracasso visto que a grande maioria está, há muito, divorciada dessas manifestações culturais por motivos mais díspares, desde razões económicas até a sua dispersão em termos geográficos, baixo nível de cultura geral, passando por “carência de coesão e unidade” e sobretudo por indiferença.

Nesta fase muito tardia, o konkani não é para ser apreendido no laboratório, isto é, não pode ser estudado em espaços fechados entre quatros paredes como nas escolas. Deveria ter sido incutido oralmente pelos pais, os melhores professores do mundo, em casa e no dia-a-dia como acontece em Goa ou como fazem os nossos irmãos hindus de Portugal, falantes do guzerati, e a comunidade chinesa falante do cantonês ou mandarim. Não se salvam os pandas e os tigres empurrando-os para as jaulas do Zoo. A sua salvação está no ambiente natural e livre nos grandes espaços verdes, onde não habitam os predadores de topo. Suponhamos que alguém se aventurava a lançar um curso de língua konkani. Quantos interessados conseguiria congregar? Quantos professores profissionais de konkani estão disponíveis em Portugal? Qualidade de ensino? Curso intensivo (teórico e superficial)? Possibilidade de praticas diárias fora da escola? Estudar konkani com que objetivo? Estuda-se inglês, por exemplo, para emigrar ou ser professor, ou seja, obter retorno ou compensação monetária. Segundo a Embaixada da Índia e dados não definitivos, haverá cerca de 90.000 pessoas de etnia indiana em Portugal, dos quais cerca de 15.000 cristãos, ou seja, goeses,  damanenses e diuenses (estes dois últimos saberão falar guzerati?). Há uns anos atrás o saudoso Prof. Teotónio R. de Souza deu um curso de konkani para cerca de uma dezena de alunos. E agora, quantos destes falam fluentemente a língua de Goa?

Enquanto na Índia o konkani vagueia livremente de Mumbay até ao norte de Kerala e dos Gates Ocidentais até ao Índico, não olvidando as “bolsas de konkani” em Nova Delhi, Bangalaru (Bangalore), Poona, Chandigarh, Aurangabad etc., aqui em Portugal está enjaulado no Zoo das Línguas em Perigo de Desaparecimento e, paradoxalmente, os raros e despreocupados espetadores são os próprios goeses. 

Pedro Mascarenhas